NA LAMA, A DURA BATALHA DOS CATADORES DE CARANGUEJOS

Edison Barbieri
Jocemar Tomasino Mendonça

 

O Brasil é considerado o país que tem a maior área de manguezal do planeta. São 25 mil quilômetros quadrados, distribuídos em 7408 quilômetros de orla litorânea, que vão do extremo norte do Amapá até São Francisco do Sul, em Santa Catarina.

Regimes de transição, os manguezais (= mangues) têm o clima mais ameno da zona costeira por causa da vegetação, e são considerados por biólogos, pescadores e catadores como verdadeiras fábricas de alimento. O manguezal é parte de um ecossistema de elevada produtividade pesqueira. Muitas espécies de peixes e crustáceos iniciam seus ciclos de vida e desovam no estuário. Cercado por árvores típicas, o manguezal é um ambiente protegido das ondas, o que aumenta a chance de sobrevivência das espécies. Ambientes altamente produtivos, os manguezais são elos básicos para cerca de dois terços das espécies de peixe que dependem deles para procriação ou para alimentação. Nesta cadeia, os caranguejos têm importância fundamental, constituindo grande recurso alimentar para aves e mamíferos.

Moradores permanentes desse ambiente inóspito e pouco oxigenado, os caranguejos são grandes contribuintes na criação de condições de vida para a flora e a fauna do mangue. Quando os caranguejos fazem suas tocas, revolvem o solo mais profundo, oxigenando e distribuindo nutrientes, que depois serão levados para o mar com as cheias e vazantes de maré. O caranguejo­uçá tem um papel fundamental na manutenção do equilíbrio do mangue. Alimentando­se principalmente de folhas velhas e amareladas que caem das árvores do mangue, ele devolve para o ambiente matéria orgânica rica em nutrientes. E não é apenas consumindo as folhas que o uçá colabora no enriquecimento do mangue, mas também fazendo um estoque de folhas nas galerias. Assim, a matéria orgânica fica retida no manguezal e não se perde quando a maré fica vazante e as águas começam a baixar.

A diminuição do número de caranguejos­uçá pode tornar inviável a vida de outras espécies da fauna do mangue. É o caso do caranguejo­violinista, que se alimenta dos restos de matéria orgânica da alimentação do uçá. Toda uma cadeia alimentar depende da atividade destes crustáceos, e a degradação dos mangues e extinção dos caranguejos significa destruição desse ciclo, em que a atividade da pesca será a primeira a ser afetada.

Em todo o Brasil destacam­se, na produção de caranguejos, a região do Salgado, no Pará; o delta do Paraíba, entre Maranhão e Piauí; todo o estado de Sergipe; as baías de Guanabara e de Sepetiba, no Rio de Janeiro; e o manguezal de Iguape e Cananéia, no litoral sul do estado de São Paulo. Destes estados, Sergipe é o maior produtor e o que mais consome o caranguejo­uçá, Ucidessp (espécie mais comercial). De seus manguezais saem por semana, em média, 100 mil crustáceos, que em grande parte serão vendidos em feiras da Bahia.

No Brasil, em todas as regiões de mangue existem pessoas que vivem da cata do caranguejo, para vender a bares e restaurantes do litoral ou a atravessadores, que comercializam o produto nos grandes centros. São os chamados catadores de caranguejo, que entram no mangue na vazante (maré está baixando), quando as tocas ficam descobertas. Segundo Wagner Robson Klinke, que há 20 anos trabalha capturando caranguejos nos mangues de Cananéia, os catadores passam de 4 a 6 horas num imenso mar de lama, atrás desse crustáceo. Não ficam mais tempo devido ao cansaço que a atividade impõe e pelo regime de marés.

Vestidos com roupas velhas, os catadores entram no mangue, que quase sempre é cortado por pequenos canais, em uma pequena canoa a remo. Para uma pessoa que nunca viu um manguezal, à primeira vista ele parece um labirinto, com canais e raízes de árvores típicas de mangue, com raízes­escora e pneumatóforos adaptados à oscilação da maré. Neste ambiente, só mesmo quem o conhece bem sabe como entrar e sair sem ter algum tipo de problema.

Depois de remar, é hora de ir atrás dos caranguejos enterrados na lama. Durante a "cata", enlameado, o catador tem de enfrentar um outro desafio, vencer as nuvens de mosquitos­pólvora (maruins), pernilongos, borrachudos e a dolorida mutuca, insetos típicos destes ambientes. O catador tenta proteger­se desses insetos passando no corpo uma mistura de óleo e querosene, que exala um terrível mau cheiro. Além disso, ele deve ter o máximo de cuidado com as raízes, onde se incrustam ostras, que, com freqüência, ferem suas mãos, braços e pernas.

A rotina dos catadores de Cananéia é semelhante à descrita anteriormente. Durante a safra, que vai de dezembro a março, trabalham todos os dias da semana, retirando em torno de 20 dúzias de caranguejos por dia. Fora da safra, a captura fica em torno de 5 a 6 dúzias, apenas. A dúzia, geralmente, é vendida por 5 reais, mas esse valor pode oscilar de acordo com o comércio. Durante a safra, um catador consegue ganhar cerca de 700 reais por mês e, fora da safra, 400 reais.

O manguezal do complexo estuarino­lagunar de Iguape­Cananéia é, no estado de São Paulo, o que está em melhor estado de conservação, e, por isso, talvez o que apresente o maior número de caranguejos por metro quadrado: em torno de 3 a 4, quando fora da safra. Porém, como em todo o país, na região de Iguape­Cananéia, a tradição vem sendo rompida, pois os catadores estão abandonando os métodos tradicionais de trabalho, substituindo­os por técnicas consideradas predatórias. Tanto em Cananéia quanto em Iguape, onde está a maior concentração dos caranguejeiros (= catadores) tradicionais do estado, o braceamento (tirar o caranguejo enfiando o braço na toca) e o tamponamento (tampar o buraco com o pé e esperar o animal subir) vêm sendo substituídos pela redinha, ou lago.

A redinha é um emaranhado de fios desfiados de saco de polipropileno (saco utilizado para transportar cebola, adubo etc.) que é colocado na entrada da toca do caranguejo, de forma que o animal fique preso quando subir em busca de oxigênio e alimento. Esse método, embora proibido na região Sudeste­sul do país (Portaria nº 52, de 30 de setembro de 2003, abaixo anexada), vem sendo utilizado com bastante freqüência, acarretando dois tipos de problemas: 1) não seleção das presas, capturando fêmeas ovadas e "caranguejos de leite" (quando realizam a muda), pois, quando o catador usa o braço ou o tampão, não retira da lama essas formas de caranguejo, enquanto a redinha não seleciona as presas, e 2) poluição provocada pelas redinhas não recolhidas, visto que os catadores chegam a espalhar por dia mais de 100 e, nem sempre, têm tempo de voltar a todas elas, e os caranguejos presos na armadilha acabam devorados pelos predadores naturais, lontras, guaxinins e gaviões, e os emaranhados de fios ficam no ambiente por muito tempo.

Outro problema que se verifica na atividade da cata de caranguejos é decorrente da entrada de catadores de outras regiões, que cria rivalidade entre os catadores (locais e de fora) e desequilíbrio na captura do recurso, visto que os catadores que vêm geralmente de outras regiões percorrem longas distâncias para explorar o recurso e, necessitando obter boa produção, infringem a legislação, utilizando a redinha e outros aparatos.

Devido a esta rivalidade, à dificuldade de competir com os catadores que vêm de fora e à praticidade do método da redinha, atualmente os catadores tradicionais estão trocando o tamponamento e a braçada pela redinha, ocorrendo assim um desequilíbrio generalizado na produção do caranguejo.

Segundo o catador Wagner Klinke, há cinco anos começou a diminuição da captura, e dentre os fatores que ele aponta como causa incluem­se: captura excessiva, uso da redinha e comercialização da pata. Esta última prática é uma das mais deprimentes de se ver na natureza. O catador arranca a pata (quela, garra, ou pinça) do caranguejo e o deixa no mangue, vivo sem seus membros, para morrer. Esta prática também é proibida por lei, mas devido a uma fiscalização pouco efetiva, infelizmente, tornou­se comum em locais de cata de caranguejo.

Em todo o litoral brasileiro, as populações tradicionais de catadores vivem quase que exclusivamente dessa atividade de cata. São pessoas que dependem do meio ambiente para a sua sobrevivência e que, por isso mesmo, com ele interagem, respeitando seus ciclos naturais. Conhecem tão bem os caranguejos, que sabem diferenciá­los por espécie, idade e sexo. Mas há também os catadores esporádicos, ou melhor, predadores esporádicos, vindos de outras profissões, que se dedicam à cata na época da andada, quando se realiza o grande passeio do acasalamento.

A andada, também chamada carnaval, sanata ou ata, dependendo da região, ocorre entre dezembro e fevereiro, época em que as chuvas provocam um choque salino no manguezal. Os caranguejos, atordoados, saem de suas tocas e se põem a vagar em todas as direções. É o tempo do "cio", quando os pequenos crustáceos perdem a proteção e se deixam conduzir apenas pelo instinto da reprodução. Uma andada dura três a quatro dias, conforme a espécie e a região, e os catadores tradicionais nunca recolhem os caranguejos vagantes, como na região Nordeste e estado do Rio de Janeiro. Nos estados de São Paulo, Paraná e Santa Catarina, as maiores produções ocorrem no período da andada, havendo a coleta de caranguejos vagantes, até mesmo pelos catadores tradicionais.

Edição Número 191 de 02/10/2003

 

Ministério do Meio Ambiente, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos

 

Recursos Naturais Renováveis PORTARIA Nº 52, DE 30 DE SETEMBRO DE 2003

O PRESIDENTE DO INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS ­IBAMA, no uso das atribuições previstas no art. 24, Anexo I, da Estrutura Regimental aprovado pelo Decreto nº4.756, de 20 de junho de 2003, e art. 95, item VI do Regimento Interno aprovado pela Portaria GM/MMA n.º 230, de 14 de maio de 2002;

Considerando o disposto no Decreto­lei nº 221, de 28 de fevereiro de 1967;

Considerando as recomendações da 4ª Reunião de Avaliação e Ordenamento do Caranguejo­Uçá (Ucides cordatus) das Regiões Sudeste e Sul do Brasil, e

Considerando o que consta do Processo IBAMA/Sede nº 020001.005226/00­41, resolve:

Art.1º Proibir, anualmente, a captura, a manutenção em cativeiro, o transporte, o beneficiamento, a industrialização o armazenamento e a comercialização da espécie Ucides cordatus, conhecido popularmente por caranguejo, caranguejo­uçá, caranguejo­do­mangue, caranguejo­verdadeiro ou catanhão, ocorrente nos estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Santa Catarina, da forma como se segue:

I­no período de 1º de outubro a 30 de novembro: para todos os indivíduos (machos e fêmeas);

II­no período de 1º a 31 de dezembro: somente para as fêmeas.

§1º Entende­se por manutenção em cativeiro, o confinamento artificial de caranguejos vivos em qualquer ambiente.

§2º As pessoas físicas ou jurídicas que se dedicam à captura, conservação, beneficiamento, industrialização, armazenamento ou comercialização da espécie Ucidescordatusdevem fornecer ao IBAMA, até o 5º dia útil do mês de outubro, a relação detalhada dos produtos estocados nas formas congelada ou pré­cozida, indicando os locais de armazenamento, conforme consta no Anexo 01 desta Portaria.

Art.2º Fica delegada competência aos Gerentes Executivos Estaduais do IBAMA das regiões Sudeste e Sul para que, em portaria específica, estabeleçam, com base em pesquisas e processos de gestão participativa, e ainda, segundo as peculiaridades locais, adequações mais restritivas a esta Portaria, como a suspensão da captura nos dias de "andada".

Parágrafo único. Entende­se por "andada" o período reprodutivo em que os caranguejos saem de suas galerias e andam pelo manguezal para acasalamento e liberação de larvas, período em que a espécie está mais vulnerável.

Art.3º É vedado o transporte interestadual e a respectiva comercialização da espécie Ucidescordatus, sem a comprovação de origem do produto, conforme formulário de guia (Anexo 02), a ser obtido junto ao IBAMA e que deverá acompanhar o produto desde a origem até o destino final.

Art.4º Proibir, em qualquer época do ano, nos estados das regiões Sudeste e Sul, a captura, a coleta, o transporte, o beneficiamento, a industrialização o armazenamento e a comercialização da espécie Ucidescordatus, como se segue;

I ­fêmeas ovadas;

II ­indivíduos com largura de carapaça inferior a 6,0 cm (seis centímetros);

III ­partes isoladas (quelas, pinças ou garras).

Parágrafo único. Para efeito de mensuração, a largura de carapaça é a medida tomada sobre o dorso do corpo, considerando sua maior distância, de uma margem lateral à outra.

Art.5º Proibir, em toda a região de abrangência desta Portaria, em qualquer época do ano, a utilização de quaisquer tipos de armadilhas, petrechos ou instrumentos cortantes e produtos químicos na captura da espécie Ucidescordatus.

§1º O disposto no "caput" deste artigo, não se aplica aos petrechos denominados "chuncho" e "gancho", utilizados como instrumentos facilitadores na captura da espécie.

§2º Para efeito desta Portaria, define­se:

I ­"Chuncho": instrumento de madeira, em formato de clave, afilado na extremidade inferior, que serve como alargador das tocas;

II ­Gancho": haste com a extremidade inferior em ângulo, que serve como prolongamento do braço do catador.

Art.6º O produto da captura apreendido pela fiscalização, quando vivo, deverá ser devolvido ao manguezal, preferencialmente, ao local onde foi capturado, respeitando­se o disposto no Decreto nº 3.179, de 21 de setembro de 1999.

Art.7º Aos infratores da presente Portaria serão aplicadas as penalidades previstas na Lei nº 9.605, de fevereiro de 1998 e no Decreto nº 3.179/99.

Art.8º Fica revogada a Portaria IBAMA nº 124, de 25 de setembro de 2002.

Art. 9º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação

MARCUS LUIZ BARROSO BARROS


 


Edison Barbieri é oceanógrafo com habilitação em oceanografia biológica e geológica, mestre em geografia física e concluiu o doutorado em Oceanografia (Oceanografia Biológica) pela Universidade de São Paulo em 2000. Atualmente é Pesquisador do Instituto de Pesca, Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento do Litoral Sul, Cananéia (SP). Atua na área de Oceanografia, com ênfase em Interação entre os Organismos Marinhos e os Parâmetros Ambientais. Em seus a trabalhos científicos os termos mais freqüentes são: Aves marinhas, ecologia, Ave de praia, ave, poluição, toxicidade, Antártida, oceanografia, peixe e aves.
Contato: edisonbarbieri@yahoo.com.br

 

Jocemar Tomasino Mendonça possui graduação em Oceanografia pelo Fundação Universidade Federal do Rio Grande (1991) e mestrado em Oceanografia (Oceanografia Biológica) pela Universidade de São Paulo (1998) . Atualmente é pesquisador científico do Instituto de Pesca, Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento do Litoral Sul, Cananéia (SP). Tem experiência na área de Oceanografia , com ênfase em Oceanografia Biológica. Atuando principalmente nos seguintes temas: Pesca, Caracterização sócio-econômica, Recursos pesqueiros, litoral sul de São Paulo.
(Texto gerado automaticamente pela aplicação CVLattes)
Contato: jmendonca@pesca.sp.gov.br



Reprodução autorizada desde que citado o autor e a fonte


Dados para citação bibliográfica(ABNT):

BARBIERI, E.; MENDONÇA, J.T. Na lama, a dura batalha dos catadores de caranguejos. 2007. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2007_3/caranguejos/index.htm>. Acesso em:


Publicado no Infobibos em 16/09/2007

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