A BIOMETEOROLOGIA E O DESAFIO DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS* por Roberto Gomes da Silva INTRODUÇÃO Nos últimos anos vêm aumentando cada vez mais as vozes de alarme a respeito das mudanças que estão ocorrendo nos climas de todo o planeta. Estas mudanças não são pontuais, mas envolvem alterações sistemáticas nos diferentes componentes climáticos, mais acentuadamente em algumas regiões do que em outras. Em conseqüência, tem havido um crescente interesse numa melhor compreensão das interrelações entre os seres vivos e seus ambientes, como resultado de uma conscientização geral dos prejuízos que a ignorância, inconsciente ou mesmo deliberadamente cultivada, tem causado à Natureza. Entretanto, uma tendência humana ainda muito generalizada é o enquadramento dos fenômenos naturais em categorias estanques, geralmente desprezando como secundárias as interrelações e interdependências entre grande parte desses fenômenos. Esquece-se de que nada na Natureza é simples e que os conhecimentos que dela temos são ainda muito precários e apenas circunstanciais. As coisas em geral não existem realmente sob a forma em que as classificamos e pretendemos vê-las, mas assim fazemos apenas como uma tentativa de entendê-las. Não existe homogeneidade real em termos de fenômenos, de espécies, de populações, de comportamento: a heterogeneidade é a regra. A significância filosófica dessa interrelação harmônica entre os seres vivos e o seu ambiente foi destacada por Lovelock (1979) e explicada sob o que foi denominado de hipótese Gaia1, segundo a qual a matéria viva, a atmosfera, os oceanos e a superfície terrestre formam um sistema complexo, teleológico (isto é, que tem um fim em si mesmo) o qual pode ser considerado como um organismo único, direcionado, que evolui em seu próprio ambiente e controla seu destino a longo prazo. A Biosfera, que constitui o conjunto de organismos vivos que se acham na superfície terrestre, interagindo com a Atmosfera, representa um continuum de componentes de sistemas e escalas espaciais (Campbell e Norman 1998). Assim, um continuum gasoso (ar, vapor de água, CO2, O2, etc.) funciona entre a atmosfera e os espaços aéreos no solo e na estrutura dos animais e das plantas; um continuum aquoso funciona entre os espaços úmidos no solo e as células das raízes e folhas dos vegetais. Nestes casos ocorre uma troca de energia e de massas de água. Um continuum térmico, por outro lado, envolve as trocas de energia térmica ou calor entre os organismos e os inúmeros componentes do seu ambiente. A Biosfera é realmente um continuum complexo, não apenas do ponto de vista das interrelações dos organismos com o meio ambiente, como ainda em termos dos modelos e formulações empregados para descrever esses sistemas. As descrições dos fenômenos naturais podem variar quanto à complexidade, desde o aspecto mais trivial até o incompreensível, mas o nível dessa complexidade depende apenas do propósito de cada observador. As conseqüências dessas relações de troca de energia e de massa entre a Biosfera e o ambiente é que constitui o objeto principal do estudo da Biometeorologia. Diversas análises têm demonstrado um aumento da temperatura média no Hemisfério Norte em 0,6oC desde o início da era industrial (IPCC, 2001). Este aquecimento tornou-se mais notado entre 1920 e 1940, estabilizando-se até 1970, a partir de então aumentando acentuadamente. Uma característica interessante dessas alterações é que a amplitude diária das temperaturas está diminuindo em muitos lugares, através da elevação das temperaturas mínimas numa taxa duas vezes maior que a das temperaturas máximas (0,2oC contra 0,1oC por década). Desde 1950 tem havido uma constante redução na freqüência de baixas temperaturas, ao mesmo tempo em que vem aumentando a freqüência de temperaturas altas. Fenômenos como o El Nino (aquecimento da superfície do Oceano Pacífico) afetam acentuadamente as variações da temperatura e da precipitação em regiões da faixa intertropical, particularmente na América do Sul. Nas regiões de média e alta latitude do Hemisfério Norte a precipitação está aumentando entre 0,5 e 1 % por década, enquanto que na faixa entre 10o Sul e 30o Norte a precipitação aumentou apenas entre 0,2 e 0,3 % por década. Nas regiões equatoriais (<10o) em geral não tem havido mudanças significativas. Em partes da Ásia e da África a freqüência e a intensidade das secas têm aumentado em décadas recentes. Tais mudanças apresentam efeitos consideráveis sobre a flora e a fauna e atingem de forma preocupante as populações humanas, tanto de forma direta como indireta. FATORES ENVOLVIDOS NAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS De uma forma geral, os fatores envolvidos nas modificações climáticas podem ser considerados como os seguintes:
Irradiância solar na superfície terrestre Os fatores que alteram a quantidade de radiação solar que atinge a superfície terrestre são: a latitude, a época do ano, a hora do dia, a nebulosidade e a composição da atmosfera. O primeiro é um fator geográfico e os dois seguintes são fatores astronômicos, todos regulares e previsíveis. Os restantes são bastante complexos, especialmente o último, que muitos autores consideram como a mais importante causa das mudanças climáticas que vêm sendo observadas. Atmosfera: composição e circulação Os gases que constituem a atmosfera são partes importantes dos organismos per se e do seu ambiente ambiente específico, no caso dos animais terrestres. Por outro lado, os fenômenos atmosféricos, variações de temperatura, umidade, ventos, precipitação e condensação de água, reações químicas, associam-se diretamente às transformações da crosta terrestre e assim exercem também um efeito indireto sobre os organismos. O clima de uma região pode ser de fato considerado como a resposta da atmosfera à interação entre a energia solar incidente e os fatores geológicos e biológicos, como procura explicar a Hipótese Gaia, mencionada anteriormente. Em suma, a evolução do ambiente climático afeta a evolução dos organismos e vice-versa, num fenômeno de co-evolução (Ehrlich & Raven 1965). Para os interessados na relação entre vida e clima, o excelente livro de Schneider & Londer (1984) é bastante abrangente e elucidativo. Como corolário do que foi dito acima, pode-se afirmar que um conhecimento adequado dos fundamentos da dinâmica dos gases atmosféricos pode levar a uma melhor compreensão não apenas das variações da atmosfera propriamente dita (fenômenos meteorológicos), como também da inter-relação da mesma com os organismos vivos (fenômenos fisiológicos). A atmosfera é uma mistura de gases, cada um dos quais com ação independente, além de vapor de água. Como a proporção deste último é muito variável, a composição da atmosfera é preferencialmente descrita em termos de ar seco. Três gases constituem em conjunto 99,96% da atmosfera: nitrogênio, oxigênio e argônio; o restante é constituído por gases inertes (neônio, hélio, criptônio, xenônio) e hidrogênio, em proporções mais ou menos fixas. Em adição a esses, ocorrem ainda em proporções variáveis: ozônio, dióxido de carbono, metano e diversos outros, geralmente considerados como “poluentes”. Esses gases têm um papel de grande importância para a vida na Terra, através do chamado Efeito Estufa. Sendo permeáveis à passagem da radiação solar de ondas curtas, têm uma capacidade muito limitada para a transmissão da radiação térmica de ondas longas. Assim, a superfície terrestre aquece-se pela ação direta da radiação solar de ondas curtas e emite radiação térmica de ondas longas, as quais são barradas e absorvidas pelas partículas e moléculas de gases presentes na atmosfera, o que impede a energia térmica de dissipar-se no espaço. Juntamente com a presença de nuvens, este fenômeno mantém a baixa atmosfera numa temperatura cerca de 30oC mais alta do que seria de outra forma (IPCC, 1996); sem isso, a superfície da Terra se tornaria semelhante à da Lua. Na Tabela 1 acha-se a composição média básica da atmosfera.
Dióxido de carbono. O CO2 é gerado por combustão e pelos processos respiratórios dos organismos, neste último caso destacando-se a contribuição dos oceanos. A sua absorção pelos vegetais durante a fotossíntese mantém o estado de equilíbrio. Entretanto, o uso crescente de combustíveis fósseis (petróleo e carvão) a partir de meados do século XIX vem causando uma considerável liberação de CO2. Esse CO2 existia na atmosfera há milhões de anos, tendo sido removido durante as grandes convulsões geológicas que sepultaram vastas quantidades de material biológico, o qual se fossilizou. O processo está agora se revertendo pela ação do homem, liberando o gás assim armazenado em quantidades crescentes, principalmente através da queima de petróleo e de carvão. Em adição, a ocorrência de grandes incêndios florestais e os causados pelas guerras nos últimos 150 anos é uma fonte de considerável importância: a concentração desse gás aumentou de cerca de 280 ppm na era pré-industrial para 370 ppm em 2001 (IPCC, 2001). Por fim, a alarmante e crescente redução da área florestada contribui para reduzir a capacidade planetária de reciclagem do CO2. Medições periódicas da concentração de CO2 na atmosfera, realizadas a partir de 1958 em locações livres de contaminação de origem antropogênica (Antártica e Monte Mauna Loa no Hawaii) indicam que essa concentração aumentou 18% entre esse ano e 2003. Na figura 1 pode ser notado que há uma variação anual constante nessas duas locações, ocorrendo um pico máximo na primavera e mínimo no outono. Essas variações estacionais são bastante regulares, mas ainda não há explicações convincentes para as mesmas.
O2 + e --> O + O onde e é a energia procedente do fóton. Sabe-se que a energia mínima necessária para essa reação corresponde a um comprimento de onda de 242,4 nm, dentro da faixa ultravioleta de ondas curtas (banda C). A taxa de dissociação do O2 é proporcional à concentração dessas moléculas e à quantidade de radiação por elas absorvida em todos os comprimentos de onda até 242,4 nm. Quando duas partículas monoatômicas O colidem uma com a outra, o O2 formado é instável e dissocia-se novamente, a menos que o excesso de energia possa ser absorvido rapidamente por uma terceira partícula, M, a qual pode ser o nitrogênio, por exemplo. O ozônio assim formado é depois decomposto. À medida que os processos de formação e decomposição se tornam muito rápidos em relação à variação diária da radiação solar, um estado de equilíbrio é alcançado. Esses processos fotoquímicos são mais ativos a uma altitude na qual a radiação incidente seja equilibrada pela absorção; em altitudes menores a maior massa gasosa faz com que essa radiação ultravioleta de ondas curtas seja quase totalmente absorvida e o tempo necessário para a ocorrência do equilíbrio fotoquímico é muito longo. Portanto, não há formação permanente de O3 em quantidades significativas nessas altitudes. Dessa forma, é menor a decomposição do ozônio formado na estratosfera, sendo esta a razão da existência de uma camada de ozônio nesta altitude. Apesar da crença generalizada, essa camada não constitui uma proteção contra a radiação ultravioleta de ondas curtas. Na realidade, ela é uma conseqüência da proteção oferecida pelo oxigênio atmosférico. Nos últimos anos tem havido muita discussão a respeito da ocorrência de falhas na camada de ozônio, entretanto os famosos “buracos” nessa camada localizam-se apenas sobre os pólos (ninguém jamais comprovou a ocorrência de “buracos” fora dos pólos), onde sempre existiram. De fato, nas regiões polares a incidência de radiação ultravioleta de ondas curtas é muito reduzida, devido ao ângulo muito baixo de incidência da radiação solar (a qual é nula durante os meses de inverno), de modo que as reações fotoquímicas acima descritas dificilmente podem ocorrer. Mas não há quaisquer evidências a esse respeito em outras latitudes. É extremamente improvável o aparecimento de tais “buracos” em outras regiões da Terra, uma vez que a formação de ozônio será constante enquanto existir oxigênio e o sol continuar a emitir sua radiação. No que se refere à suposta influência dos derivados de clorofluorocarbono (CFC), trata-se de matéria extremamente polêmica. Boeker & van Grondelle (1999) e Smith (2001), por exemplo, evidenciam o problema descrevendo a reação do seguinte modo: O3 + Cl --> O2 + ClO ClO + O --> O2 + Cl Com respeito a isso, argumenta-se que no início de 2004 foram feitas observações através de sensores instalados em aviões sobrevoando a região ártica, tendo sido verificado que as moléculas do dímero de monóxido de cloro (ClO-OCl) absorviam energia da radiação ultravioleta, dividindo-se em O2 e Cl. Por sua vez, estes dois últimos interagiam com o ozônio, quebrando as moléculas O3. Mas deve ser notado que essas reações envolvem absorção de energia UV e reduzem o acesso desses raios à superfície terrestre. São benéficas, portanto. Na verdade, o cloro não afeta a concentração de O2 na atmosfera, como se vê nas fórmulas acima e é justamente o oxigênio que confere a proteção contra UV, erradamente atribuída ao ozônio. Este último é apenas uma conseqüência do processo, tratando-se também de um gás tóxico, cujo nível atmosférico é considerado como um índice de poluição. Finalmente, com respeito a outro “argumento” muito usado pela mídia, a crescente ocorrência de câncer da pele não se deve a supostos “buracos” na camada de ozônio; ela só está ocorrendo em seres humanos e o seu início coincidiu com a generalização da moda da epiderme tostada ao ponto através de exposição excessiva ao sol, especialmente entre os povos despigmentados das raças nórdicas européias. Ou seja, o perigo não está na falta de ozônio, mas na falta de roupa, de melanina e de bom-senso. Finalmente, o ozônio acumulado na superfície terrestre, originado principalmente pela atividade industrial, contribui para um incremento térmico da ordem de 0,35 Wm-2 (Salinger, 2004), sendo considerado um gás poluente. Metano e óxido nitroso. Nos últimos anos, o uso crescente de sistemas intensivos de produção animal tem se tornado uma fonte de emissões sólidas, líquidas e gasosas que estão se tornando cada vez mais danosas ao meio ambiente. O metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O) já são considerados entre os mais importantes gases causadores do efeito estufa: a despeito da sua baixa concentração atmosférica em relação ao CO2, a importância do CH4 neste sentido é tida como 21 vezes maior que a do CO2, enquanto que a importância do N2O é 310 vezes maior (Hartung, 2003). Estima-se que aproximadamente 20% do CH4 provém da criação de animais, a qual também é responsável por 77% do N2O antropogênico. Entretanto, esses valores são incertos, devido à considerável variação nas taxas de emissão e aos muitos fatores influentes. De acordo com a Agência Ambiental Européia (EEA, 2001a), cerca de 50% do total de CH4 emitido na Europa são originados pela agricultura e principalmente por ruminantes. Por outro lado, o N2O é gerado principalmente pelos fertilizantes orgânicos e sintéticos e culturas de leguminosas (EEA, 2001b), de modo que o solo pode ser considerado como a fonte mais efetiva deste gás. Ver Tabela 2.
Já o metano é gerado basicamente como subproduto da fermentação de matéria orgânica digestível nos ruminantes, especialmente dietas à base de forragem verde. Por outro lado, dietas à base de grãos reduzem a emissão de CH4. Em conseqüência, a dieta dos animais é um fator importante na produção deste gás. Apesar disso, o esterco, especialmente o dos bovinos, é uma fonte muito mais importante de CH4 do que a fermentação entérica (Tabela 3). O problema é devido à estocagem de largas quantidades de esterco líquido em tanques, fossas e lagoas, dependendo de: quantidade estocada, área de superfície de esterco exposta e freqüência da agitação da massa (Hartung & Monteny, 2000).
A tendência prevista por todos os cenários até agora estudados é que as emissões de gases poluentes, principalmente do dióxido de carbono proveniente da queima de combustíveis fósseis, continuarão a aumentar durante o século 21. Mesmo que sejam tomadas medidas de contenção dessa emissão, tais como a adoção de novos combustíveis (álcool, gás, biodiesel) e o maior uso de eletricidade e de energia nuclear, é preciso recordar que o CO2 tende a permanecer por longo tempo na atmosfera, a menos que seja absorvido pela vegetação. Entretanto, a área florestada está se reduzindo cada vez mais rapidamente em todo o mundo. Aerossóis. Em adição aos gases já mencionados, a atmosfera contém em suspensão uma quantidade considerável de matéria particulada, os aerossóis, que são constituídos principalmente por poeira, sulfatos e sal, procedentes de uma ampla gama de fontes e produzidos a uma taxa média de 109 kg por ano (Barry & Chorley 1998): (a) Naturais Sal marinho Poeira do solo Poeira vulcânica Incêndios florestais Sulfatos derivados de H2S Nitratos derivados de NO2 Hidrocarbonetos vegetais (b) Antropogênicos Transportes Combustão estacionária Processos industriais Sulfatos derivados de SO2 Segundo Thompson (1998) as fontes naturais são as mais importantes, predominando o sal, a poeira e os sulfatos, que constituem em média 89% do total de aerossóis observado na atmosfera. Quanto à contribuição antropogênica, predominam os sulfatos derivados de dióxido de enxofre, produzidos pela queima de combustíveis fósseis. Em adição, este último material está envolvido no importante fenômeno da chuva ácida, que vem se tornando um sério e crescente problema ambiental nas regiões mais industrializadas. Como resultado da chuva ácida, as populações de organismos aquáticos são dizimadas e a composição do solo é drasticamente alterada, levando à liberação de íons tóxicos de alumínio, por exemplo, o que afeta negativamente o desenvolvimento das florestas e reduz severamente a biodiversidade. Como evidência da importância dos aerossóis como poluentes, a tabela 4 compara regiões indenes com outras de elevado índice de poluição industrial.
Ciclo hidrológico Hidrologia é o estudo da água no ambiente, incluindo mares, rios, fontes e águas subterrâneas, enquanto que a hidrogeologia estuda os aspectos geológicos da água. Os deslocamentos da água determinam o transporte de poluentes, sua dispersão ou diluição e a taxa da disseminação de poluição. Os fluxos subterrâneos de água são muito importantes, mas não podem ser medidos diretamente; os tipos, características e permeabilidade das rochas determinam os deslocamentos da água no subsolo, mas não são geralmente visíveis. Aproximadamente 97% de toda a água na Terra constituem os oceanos e mares, enquanto que o restante se acha nas geleiras e calotas polares, rios, lagos e atmosfera (Price, 1985). De grande importância são os estoques subterrâneos de água doce, denominados aqüíferos, dos quais o maior conhecido é provavelmente o Aqüífero Guarani, que abrange vários estados do sul do Brasil. Tais estoques necessitam de constante renovação, a qual se dá pela absorção da água das chuvas em áreas de solo permeável, sob as quais as rochas são adequadamente porosas. Estas áreas são conhecidas como zonas de reabastecimento do aqüífero e devem ser protegidas, evitando-se a sua ocupação por construções que prejudiquem a permeabilidade do solo ou por depósitos de lixo de qualquer espécie, que contaminem a água. Este é um problema extremamente preocupante nos estados do sul, em vista da urbanização descontrolada, da disseminação de lixões e da falta de planejamento na ocupação da terra. O uso generalizado de fossas sanitárias também é uma causa importante de contaminação das águas subterrâneas e um problema sério em muitas cidades grandes. A manutenção de um fluxo regular nos rios depende da existência de áreas florestadas nas suas cabeceiras, as quais permitem a retenção da água das chuvas e a repleção dos reservatórios subterrâneos que alimentam as fontes. Por outro lado, as faixas arborizadas ao longo das margens dos rios e lagos reduzem ou evitam a ação de enxurradas, que levam poluição e provocam enchentes. A ocupação desordenada das margens de rios e lagos contribui para poluí-los com despejos e reduzir ou mesmo impedir a sua utilização como fontes de água potável. Exemplos conhecidos são o rio Tietê, a crescente devastação da Serra da Cantareira e a favelização das margens da represa de Guarapiranga, em São Paulo. Finalmente, a redução da cobertura florestada altera substancialmente o ciclo hidrológico de uma região, especialmente se esta se acha na zona intertropical, levando a irregularidades substanciais no regime de chuvas e mesmo à redução da precipitação. Oceanos As correntes oceânicas têm um papel importante no transporte de calor na superfície terrestre, devido à elevada capacidade térmica da água. Essas correntes são também importantes para a dissolução do CO2 da atmosfera, o qual é também absorvido pelo fitoplâncton. As correntes são movimentadas pelos ventos de superfície, por diferenças de temperatura e de salinidade e por fatores geográficos. A partir de algumas regiões polares, correntes geladas se deslocam a uma certa profundidade em direção aos trópicos, emergindo gradualmente à superfície à medida que se aproximam do equador. Esta emergência de águas frias carreia nutrientes das profundidades para a superfície, aumentando os níveis de plâncton e incrementando a produtividade dos ecossistemas marinhos. É o que ocorre com a corrente de Humboldt, que procede da Antártica e emerge nas costas do Peru, tornando-as abundantes em vida marinha. Entretanto, o resfriamento das águas costeiras que esta corrente proporciona, faz com que se reduza substancialmente a evaporação e, em conseqüência, a região da costa do Peru é muito seca e árida. Parece ser possível que mesmo pequenas mudanças na temperatura e na radiação globais provoquem alterações substanciais nas correntes marinhas, como sugere Smith (2001), levando a mudanças climáticas imprevisíveis. Por exemplo, tem sido sugerido que, à medida que se reduza a formação de gelo na Groenlândia, a diminuição do processo de convecção que alimenta a Corrente do Golfo levará a uma redução no fluxo desta e à ocorrência de temperaturas cada vez mais baixas no norte da Europa. O nível geral dos oceanos mostra uma tendência para aumentar entre 9 cm e 88 cm no período de 1990 a 2100, em todos os modelos até agora estudados. Isto é devido basicamente à expansão térmica e à perda de massa das geleiras e calotas polares, a qual já se acha em acelerado processo. O derretimento de gelo polar provavelmente causará uma redução na temperatura dos oceanos e, portanto, na taxa de evaporação, o que por sua vez afetará o regime pluviométrico de muitas regiões. POSSÍVEIS IMPACTOS NA AGRICULTURA E NA PECUÁRIA Apesar dos alertas repetidos, dos tratados internacionais e das contínuas discussões em nível científico, político e leigo, tudo indica que as populações humanas continuarão a agir da mesma forma como têm agido até agora, ou seja, ignorando os efeitos desastrosos de muitas de suas atividades sobre o ambiente em que vivem. Em conseqüência, a maioria dos modelos matemáticos até agora estudados prevê que a temperatura média global e o nível dos oceanos continuarão a aumentar. Segundo esses modelos, a temperatura média global deverá aumentar em 5,8oC até o ano de 2100 (IPCC, 2001a). Trata-se de uma taxa de aquecimento muito maior que a observada durante o século XX. Mas esse aquecimento não deverá ser uniforme, sendo muito mais acentuado na América do Norte, norte da Ásia e Ásia central; e menos acentuado na América do Sul. Resultados de recentes simulações climáticas indicam que haverá uma elevação nos níveis de precipitação pluviométrica nas regiões de alta latitude do hemisfério norte. Na Austrália, na América Central e na África do Sul prevê-se uma consistente redução nas chuvas de inverno (Salinger, 2004). Toda a Biosfera será afetada pelas mudanças climáticas previstas. As alterações na temperatura e no regime pluviométrico afetarão a distribuição e as características da vegetação em muitas regiões, algumas das quais tenderão à desertificação. Entretanto, outras regiões serão beneficiadas por mudanças favoráveis. A fauna será igualmente afetada, sendo possível que algumas espécies sejam extintas em curto prazo. Há perspectivas de desenvolvimento de plantas e animais para adaptação às altas temperaturas, através dos processos tradicionais de seleção e melhoramento genético, além dos novos processos de manipulação genética. No caso das plantas, há necessidade de incrementar a sua adaptação a níveis elevados de dióxido de carbono. No caso de animais domésticos, há necessidade de se intensificar os programas de melhoramento para adaptação de variedades mais produtivas em ambiente quente. Tais esforços são mais importantes que o desenvolvimento de tecnologias para melhorar o conforto térmico, uma vez que estas últimas são grandes consumidoras de energia e de água. É necessário lembrar que nos cenários previstos haverá carência de água em muitas regiões, o que por sua vez levará à redução na produção de energia hidrelétrica. A degradação do solo e das reservas de água serão dois dos maiores desafios para a agricultura em futuro próximo. O uso da terra tem sido apontado como tendo maior impacto sobre as condições do solo do que os efeitos diretos da mudança climática. Assim, a adaptação aos novos tempos deve visar a mitigação deste impacto, através de uma melhor disciplina de uso da terra, como práticas de manejo integrado. A proteção das florestas ainda existentes e o estímulo ao reflorestamento devem ser objetivos de alta prioridade, tendo em vista a importância da cobertura vegetal para a absorção do CO2 atmosférico e manutenção do equilíbrio das chuvas e dos ecossistemas. Outras medidas poderiam ser tomadas, no sentido de minorar os problemas esperados: (1) Criar diversidade para obter estabilidade. A existência de muitas fontes diferentes de alimento, água e energia é uma medida prudente para enfrentar grandes flutuações ambientais. (2) Melhoramento das reservas genéticas. Desenvolvimento e teste de um grande número de variedades genéticas, capazes de atender a uma amplitude de ambientes climáticos, nutricionais ou outros. Isso permite que, qualquer que seja a mudança ocorrida, sempre haverá uma variedade adequada de animais ou plantas para a produção de alimento. (3) Melhores práticas de produção. A fenologia, a ciência da seqüência de estágios de crescimento biológico, sugere que os produtores aumentem sua produção usando quantidades mínimas de água de irrigação, fertilizantes ou outros insumos. Isso é feito através de um cuidadoso controle de tempo no decorrer da produção. (4) Estocagem adequada. Seja de alimento, água ou energia, deve-se manter reservas suficientes e sistemas de distribuição adequados. (5) Desenvolvimento de fontes alternativas de energia. Tal como no caso de variedades genéticas, é necessário dispor-se de várias fontes diferentes de energia, às quais recorrer por ocasião de mudanças ambientais que prejudiquem ou inviabilizem a oferta de energia de determinada natureza. PAPEL DOS BIOMETEOROLOGISTAS Considerando que a Biometeorologia é, por excelência, o estudo das relações entre a Biosfera e o ambiente atmosférico, cabe àqueles que a praticam um papel de grande importância nos tempos que correm e nos que estão por vir. Há uma necessidade crescente de mais e melhores pesquisas a respeito dos fenômenos de troca de energia térmica entre os seres vivos e o seu ambiente, particularmente no que se refere aos efeitos das altas temperaturas, da radiação solar e ao uso da água. Mas para que essas pesquisas sejam realmente válidas na sua contribuição, deve haver uma comunicação efetiva entre os pesquisadores das diferentes áreas abrangidas pela Biometeorologia. A ciência é uma só, a busca da Verdade, e todos aqueles que se consideram cientistas precisam da colaboração uns dos outros, deixando de lado as vaidades profissionais, a competição sem sentido, o desdém pelo conhecimento alheio e, particularmente, a preguiça em estudar. Somente assim poderemos enfrentar os grandes desafios que estão à nossa frente, os quais não poderão ser resolvidos tão somente por tecnologias desenvolvidas às pressas, mas principalmente através de boa vontade, do conhecimento compartilhado e de muito bom-senso. REFERÊNCIAS
Ahrens, C.D. Meteorology Today.
St. Paul, MN: West Publ. Co., 1991. * Palestra apresentada no IV Congresso Brasileiro de Biometeorologia, realizado em Ribeirão Preto de 09 a 11 de abril de 2006. Texto base publicado em PDF (Portable Document Format) no CD-ROM dos anais do congresso.
Roberto Gomes da Silva
é Professor Titular de
Bioclimatologia, Departamento de Zootecnia, Faculdade de
Ciências Agrárias e Veterinárias, UNESP, Jaboticabal, SP
Reprodução autorizada desde que citado o autor e a fonte Dados para citação bibliográfica(ABNT): SILVA, R. G. da. A biometeorologia e o desafio das mudanças climáticas. 2006. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/artigos/ambiente/biometeorologia/index.htm>. Acesso em:
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