NOVO CÓDIGO FLORESTAL NÃO CONSTITUI O FIM DA HISTÓRIA: RECONHECIMENTO DA AGROPECUÁRIA CONSOLIDADA E O NOVO EDIFÍCIO REGULATÓRIO AMBIENTAL

 

JOSÉ SIDNEI GONÇALVES ([1])

 

Regulação ambiental e agropecuária: embate que veio para ficar

 

A questão crucial resolvida na versão do Novo Código Florestal aprovado pela Câmara dos Deputados está em retirar da ilegalidade os espaços de agropecuária consolidada na medida em que são reconhecidos os direitos adquiridos uma vez que um dispositivo legal não pode ter efeito retroativo a não ser para beneficiar os cidadãos. Esse princípio de direito foi recentemente reconhecido na sua plenitude pelo Supremo Tribunal Federal nos julgamentos da aplicação da denominada Lei da Ficha Limpa para processos eleitorais. Em linhas gerais na questão do Código Florestal esse fato acontece na medida em que a legislação atual foi estabelecida pela Medida Provisória 2166-67 de 2001 que estabeleceu dentre outras medidas, a não contagem das áreas de preservação permanente para efeito de reserva legal. Exatamente aí está a consistência dos direitos adquiridos dos agropecuaristas pelo princípio jurídico de que de que os dispositivos legais não podem retroagir para fins de punição.

O Novo Código Florestal faz justiça em função de que o agropecuarista somente é obrigado a seguir leis vigentes na época em que abriu a fazenda. Entretanto, torna-se necessário pontuar que a edição dessa nova legislação pletora do reconhecimento de direitos adquiridos dos agropecuaristas não implica no fim da história do embate setorial envolvendo a legislação ambiental. Na verdade configura-se como um alicerce necessário e sólido sobre o qual deve ser erguido um amplo edifício jurídico que consolide a legislação ambiental com base na qual serão realizados os empreendimentos produtivos da agricultura. Ou seja, os embates entre interesses setoriais e movimentos ambientalistas como forças legítimas da sociedade democrática vieram para ficar. E representam o novo no devir da construção da agricultura do futuro. Nunca é demais assinalar que no campo político as lideranças agropecuárias brasileiras têm tradição secular frente movimentos dos “sem”, quais sejam os “sem terra” nos conflitos agrários.

A luta ambiental pela primeira vez coloca as postulações setoriais contra os “com”, quais sejam os ambientalistas “com renda”, ou seja, são formadores da demanda efetiva de origem urbana. E pela própria transformação econômica ao se dar pela urbanização tornou a população urbana esmagadoramente hegemônica frente à rural. Logo, mostra-se fundamental entender de forma consistente o conteúdo do Novo Código Florestal para que seja dimensionada a dimensão da tarefa de uma participação ativa das forças da agropecuária na construção do moderno edifício jurídico de cunho regulatório que ordenará os movimentos seguintes de mudanças setoriais, as quais são inexoráveis em função do atendimento de exigências qualitativas e quantitativas do lado da demanda, de cuja formação participa o crescente movimento ambientalista, numa economia que os mais antigos manuais de microeconomia já identificavam como resultante da “ditadura do consumidor”.

 

Novo Código Florestal como alicerce do novo edifício da regulação ambiental

 

Desde logo se mostra preciso pontificar que o Novo Código Florestal não autoriza novos desmatamentos buscando com novas regras obter o cumprimento das determinações legais para a Reserva Legal (RL) e as Áreas de Preservação Permanentes (APPs). Nas Reservas legais continuam prevalecendo a manutenção dos percentuais de 80% na Amazônia, 35% no cerrado e 20% nas demais áreas. Mas ao reconhecer o direito adquirido das áreas consolidadas de ocupação agropecuária o Novo Código Florestal retira da ilegalidade os proprietários rurais que quando abriram suas fazendas não tinham a referida limitação legal ao uso do solo. Desde logo, ao reverter a disposição da MP 2166-67 de 2001 e possibilitar que as áreas de APPs sejam consideradas no computo da Reserva Legal, o Novo Código Florestal reduz a magnitude da área de vegetação nativa de manutenção obrigatória, contando as APPs dentro da Reserva Legal. No caso da Reserva Legal há o dispositivo da temporalidade segundo o qual se reconhece e isenta-se de recomposição as denominadas áreas agropecuárias consolidadas, segundo critérios específicos. Essa “moratória” ambiental isenta desse compromisso tão somente os espaços territoriais de colonização antiga, com o acesso ao direito sujeito à comprovação da ocupação formal e efetiva em tempos pretéritos. 

Desse modo cria mecanismo que resguarda a capacidade produtiva da agropecuária brasileira sem abrir mão dos princípios da proteção ambiental. Mas tenha-se claro que ainda que consista num avanço, o Novo Código Florestal, tal como aprovado na Câmara Federal não implica na superação de todas as limitações e/ou restrições que a atual legislação ambiental determina para a produção agropecuária. A polêmica persistente do Novo Código Florestal na versão aprovada pela Câmara Federal e que será objeto de discussão no Senado, uma vez que existe resistência no Governo Federal, está na aprovação da Emenda 164. Essa inserção descentraliza para as unidades da federação a competência de definir quais atividades agropecuárias existentes nas Áreas de Preservação Permanentes (APPs), poderão ser consideradas como "consolidadas" e, dessa forma, desobrigadas de recomposição da vegetação original. Ressalte-se que estão vetados novos desmatamentos para uso produtivo essas áreas sendo que o Artigo 10 dessa Emenda 164 vincula o reconhecimento de atividades em topos de morro e encostas à adoção de critérios de conservação do solo.

Também não procede a alegação de que ficou esvaziado o poder do CONAMA (Conselho Nacional de Meio Ambiente) em decisões sobre o uso futuro das áreas consolidadas que passariam a ser realizadas somente no âmbito das unidades da federação. Na verdade, tal como expresso nas normas atualmente vigentes, caso os Estados e a União não instituírem em lei Programas de Regularização Ambiental, o próprio CONAMA poderá realizar tal atividade. O Novo Código Florestal não realizou a transferência de tal atribuição de forma exclusiva pelos Estados federados. A União continua com a incumbência de implantar Programas de Regularização Ambiental, em ações concorrentes com os Estados que deverão, contudo, executarem essas competências nos termos definidos em regulamento por Decreto Federal. Isso em cumprimento ao que está previsto na própria Constituição Federal de 1988 ao determinar que a legislação ambiental seja concorrente, ou seja, deve ser elaborada por todos os entes federativos, atribuindo à União a competência para editar normas de caráter geral.

O Novo Código Florestal não libera de forma indiscriminada a prática de lavouras e criações em APPs em encostas com alto declive, margens de rios, encostas, topos de morros e vegetação litorânea, como mangues e restingas. A Emenda 164 não concede autorização para desmatamentos em APPs para qualquer nova atividade produtiva, sendo inclusive vedada a expansão dessas áreas ocupadas e também não garante de forma automática mesmo as lavouras e criações atualmente conduzidas nas APPs.  Ao contrário, exige que essa agropecuária não se localize “em área de risco e sejam observados critérios técnicos de conservação de solo e água" e proíbe expressamente considerar tratar como consolidadas áreas "em que haja recomendação técnica de recuperação da referida área". Quanto à magnitude das APPs, reduz-se de 30 metros para 15 metros o mínimo do espaço a ser mantido com mata ciliar. Essa medida vale para cursos d'água com até 10m de largura, com a ressalva de que isso se submete a critérios técnicos necessários para se evitar a erosão e o assoreamento de ÁPPs e faixas de conservação do solo e da água. 

Dessa maneira não se constitui em leitura correta aquela segundo a qual o Novo Código Florestal inclui dispositivo que libera a derrubada de vegetação nativa.  As propriedades rurais devem continuam com a obrigatoriedade de manutenção de reserva legal nas mesmas proporções atuais. O que muda é que poderão fazer a compensação em outra propriedade, desde que no mesmo bioma, ainda que fora de dada unidade da federação. Somente as propriedades rurais menores que 4 módulos fiscais estão desobrigados da reserva legal, sendo que deverão manter as áreas com vegetação. Mas verifique-se que se trata do conceito de propriedade e não de imóvel rural, ou seja, proprietários de mais de um imóvel terão somadas as respectivas áreas para fins dessa desobrigação. E também não estão submetidas à exigência de regeneração, recomposição e/ou compensação da Reserva Legal, como acima afirmado, as "situações de áreas que se tenham consolidado na conformidade com a Lei em vigor à época em que ocorreu a supressão". Verifique-se que a aplicação desse dispositivo não implica em que toda área atualmente ocupada com lavouras e criações sejam automaticamente consideradas áreas consolidadas, devendo esse fato ser comprovado na forma da lei, qual seja com competente documentação escritural.

 

Regras para reconhecimento dos direitos adquiridos impedem anistia

 

O Novo Código Florestal não promoverá a anistia dos agropecuaristas em relação a multas pendentes aplicadas por infrações ambientais. Continua em vigor tanto o Decreto Federal nº 6.514/2008 quanto o Decreto Federal nº 7.029/2009, que regulam as disposições sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente e estabelecem o processo administrativo federal para apuração destas infrações. Recentemente o Decreto Federal nº 7.497/2011 deu nova redação ao Artigo 152 do Decreto Federal nº 6.514/2008 segundo o qual, o Artigo 55 que dispõe sobre as multas e outras penas “entrará em vigor em 11 de dezembro de 2011”. Também continua válido o artigo 60 do Decreto Federal nº 7.029/2009 segundo o qual "o ato de adesão ao Programa Mais Ambiente dar-se-á pela assinatura do Termo de Adesão e Compromisso, elaborado pelo órgão ambiental ou instituição habilitada".  O Parágrafo 10 desse artigo define que "a partir da data de adesão ao Programa Mais Ambiente, o proprietário ou possuidor não será autuado com base nos artigos 43, 48, 51 e 55 do Decreto nº 6.514/2008, desde que a infração tenha sido cometida até o dia anterior à data de publicação deste Decreto e desde que cumpra as obrigações previstas no Termo de Adesão e Compromisso".

E conforme explicita o Parágrafo 20 artigo 60 do Decreto Federal nº 7.029/2009, "a adesão ao Programa Mais Ambiente suspenderá a cobrança das multas aplicadas em decorrência das infrações aos dispositivos referidos no Parágrafo 1º, exceto nos casos de processos com julgamento definitivo na esfera administrativa". Mais ainda o Parágrafo 30 determina que "cumprido integralmente o Termo de Adesão e Compromisso nos prazos e condições estabelecidos, as multas aplicadas em decorrência das infrações a que se refere o Parágrafo 10 serão consideradas como convertidas em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente". Mais ainda, o Parágrafo 40 prevê que "o disposto no Parágrafo 10 não impede a aplicação das sanções administrativas de apreensão e embargo, nas hipóteses previstas na legislação". Em resumo, apenas não pagarão as multas os agropecuaristas que aderirem ao Novo Código Florestal de forma expressa, num processo de adequação dado o reconhecimento do direito adquirido. E isso não consiste em perdão ou anistia. E para isso terá que fazer adesão ao Cadastro Ambiental Rural (CAR) e ao Plano de Regularização Ambiental (PRA) que representam instrumentos da gestão do uso do solo no Brasil.

 

Regulação Ambiental a partir do Novo Código Florestal: lutas setoriais em novo palco

 

A leitura acurada dos dispositivos inovadores do Novo Código Florestal, na forma do que foi aprovado na Câmara Federal, revelam que não fazem sentido as postulações extremistas que vem sendo veiculadas em torno dos impactos dessa equilibrada medida de reordenamento jurídico. Afastam-se de pronto as acusações ambientalistas de que as medidas implicam em autorizações de novos desmatamentos e na anistia aos destruidores da natureza.  Noutro extremo desautorizam de forma peremptória oportunismos de cunho ruralistas na aposta de que seriam válidas as ocupações produtivas verificáveis na data da promulgação da nova legislação após sansão presidencial. Esses posicionamentos mais confundem o debate que esclarecem a sociedade civil ao escoimarem o que realmente está em jogo. Na verdade, a proposta recoloca a questão nos termos adequados ao momento nacional estruturado nos termos do Estado Democrático de Direito. E nesse caso o respeito aos direitos consiste num dos pilares da convivência social no fortalecimento da democracia e da cidadania.

O Código Florestal atual, da qual derivam interpretações diversas e regulamentações variadas do uso do solo, está sujeito a diversas pendências jurídicas derivadas de que não reconhece direitos adquiridos no processo de construção da agricultura brasileira, desde a colonização até o momento. O Novo Código Florestal ao incorporar o conceito de áreas consolidadas visa exatamente reconhecer esses direitos, em função exatamente de que as alterações recentes no texto legal simplesmente desconheceram esses direitos cunhando dispositivos mais restritos como o de não computar para fins de Reserva Legal as áreas de APPs, inovação deste século XXI na forma da MP 2166-67/2001. Isso quando a agricultura brasileira tem seus primórdios no século XVI. A nova legislação ao reconhecer os espaços de agricultura recoloca o processo na trilha histórica adequada. Por certo a nova redação proposta elimina exageros da legislação ambiental conformando os elementos de uma verdadeira moratória ambiental ao realizar acertos de contas com passado sem produzir permissividades chancelar novos desmatamentos.

Mas o Novo Código Florestal consiste num divisor de águas na construção do novo edifício da regulação ambiental para a agricultura. Consolida-se como o alicerce para uma imensa obra da engenharia regulatória cujos desdobramentos exigirão persistente participação da sociedade e das estruturas representativas da agricultura. Em síntese o Novo Código Florestal reconhece direitos adquiridos no passado da construção da moderna agricultura brasileira, mas não garante praticamente nada quanto ao futuro. De imediato há que ser procedida a revisão da imensa gama de normas e dispositivos elaborados com fulcro no Código Florestal atual o que implica em acompanhamento participativo e vigilante para que velhos entraves não sejam perpetuados e novos criados. Afinal, com o Novo Código Florestal as pressões ambientalistas, democraticamente legítimas e que vieram para ficar, não serão menos relevantes e contundentes. E a capacidade de articulação e de persuasão desses grupos sociais têm se mostrado muito mais efetiva que a dos movimentos de defesa da agropecuária.

A edição do Novo Código Florestal corresponde dessa maneira ao ponto de partida para a longa jornada de regulamentação de dispositivos e construção de novos padrões regulatórios. Em linhas gerais essa nova legislação reduz de forma significativa os impactos das restrições ambientais para os amplos espaços de agropecuária consolidada do Sul-Sudeste, mas ainda persistem relevantes focos de tensão para essa atividade nos espaços dos cerrados e principalmente no espaço amazônico. Ademais de início esse avanço implica em revisão de todas as normas emanadas do CONAMA quanto à Reserva Legal e APPs. Somente a vigilância impedirá que novas restrições sejam criadas nas normas ambientais federais e estaduais que a pretexto de regulamentar dada lei por vezes ultrapassa limites gerando disposições adicionais sem respaldo no objeto da regulamentação. A legislação paulista que “dispõe sobre a manutenção, recomposição condução da regeneração natural, compensação e composição da área de Reserva Legal de imóveis rurais”, por exemplo, que “dispõe sobre a manutenção, recomposição condução da regeneração natural, compensação e composição da área de Reserva Legal de imóveis rurais” por força do artigo 5º do Decreto Estadual nº 53.939, de 6 de janeiro de 2009, que regulamentou a Lei estadual nº 12.927, de 23 de abril de 2008, confere de forma inconstitucional o poder de escolha pela autoridade ambiental da localização de onde deve estar a Reserva Legal dentro das propriedades rurais.

E o ônus de manutenção da vegetação nativa, agora como um elemento definidor do cumprimento da função social da propriedade continuará a ser arcado pelo agropecuarista. Há que se promoverem avanços criando mecanismos tributários de compensação como poderia ser realizado com base numa ampla e profunda reforma do Imposto Territorial Rural (ITR) tornando-o efetivo na sua progressividade bem como incorporando mecanismos que remunerem reservas de privadas proteção naturais. De alguma maneira as postulações setoriais com o Novo Código Florestal poderão assumir posturas proativas na edificação de procedimentos que conduzam à sustentabilidade ambiental. Isso para elevar a sintonia com os movimentos globais que caminham em caráter inexorável pela magnitude que toma a consciência ambiental. E a ampliação da massa urbana como proporção da rural indica amplo e fértil espaço para avanços da representatividade desses movimentos dos “com” renda.

Como formadores da demanda efetiva, esses movimentos surgem exatamente pelo fato de que não estão mais pendentes a escassez de alimentos e outras mercadorias garantidoras da sobrevivência humana. E exatamente quando o acesso à quantidade se mostra próximo da saturação para essa massa urbana, proliferam as exigências pela qualidade de todos os matizes incorporando valores não apenas produtivos, mas de responsabilidade social e ambiental. O capitalismo consiste no modo de produção de mercadorias na simplificação magnífica do maior dos filósofos alemães. E a “ditadura do consumidor” dos manuais de microeconomia garante efetividade crescente a essas postulações que irão progressivamente exigindo mudanças nos processos de produção agropecuária. O sucesso da agricultura brasileira moderna e competitiva não autoriza o sono em berço esplêndido, uma vez que o processo de inovação que já se transforma em escala planetária e em ritmo alucinante ganha força e novidade nas demandas ambientalistas. A história do capitalismo mostra quão efetivos são os processos de intensa inovação no afã de revolucionar sempre as forças produtivas, tanto que “tudo que parecia sólido se desmancha no ar”.



([1]) É Engenheiro Agrônomo, Doutor em Ciências Econômicas e Pesquisador Científico do Instituto de Economia Agrícola (IEA) da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA).   



Reprodução autorizada desde que citado a autoria e a fonte


Dados para citação bibliográfica(ABNT):

GONÇALVES, J.S. Novo código florestal não constitui o fim da história: reconhecimento da agropecuária consolidada e o novo edifício regulatório ambiental. 2012. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2012_1/cf/index.htm>. Acesso em:


Publicado no Infobibos em 01/03/2012