ANAMNESE DO CICLO ECONÔMICO
Celso Luis Rodrigues Vegro
Toda crise econômica se constitui em um estancamento da trajetória precedente. Não se trata de um contratempo ocasional ou de um tropeço de percurso; tampouco de desvio de trajetória inexoravelmente predestinada à ascendência, servindo menos ainda para exibição de ímpetos de otimismo espúrios, embalados no gigantesco esforço midiático empenhado que está em enfatizar que a recuperação já é uma realidade. Ganhar inteligência sobre o fenômeno das crises econômicas implica necessariamente em, antes de qualquer coisa, reconhecer a sua existência mediante um estatuto que lhe é próprio e que sua recorrência, algo muito freqüente na história econômica, é um elemento regular ao sistema tal qual ele atualmente se estrutura (radicalização da financeirização ampliada do processo de geração e apropriação de riquezas).
As recessões e depressões pertencem ao processo de acumulação econômica e se originam em função do padrão anárquico sobre o qual se apóiam as trocas comerciais, especialmente, as transações financeiras2. A história do crescimento econômico jamais exibiu uma trajetória de ascensão ininterrupta. Os ciclos econômicos em alguma medida demarcam o encerramento de um modelo (antigo) e abrem o caminho para novos arranjos institucionais sob diferentes condições (evidentemente se houver arcabouço político capaz de respaldar a novas orientações). Assim, a regularidade da crise além de inevitável é inclusive necessária, muito embora a aniquilação de brutais montantes de riqueza conduza milhões de almas ao desespero.
Nos EUA, epicentro da atual crise global, por exemplo, aproximadamente 6,5 milhões de empregos foram extintos somente entre o quarto trimestre de 2008 e o primeiro semestre do corrente ano. No Brasil, a queda acentuada das exportações denota o quanto a economia doméstica foi e continuará sendo afetada pelo momento de declínio global. Ademais, não se descarta a possibilidade de deflação generalizada de preços o que bloquearia quase que integralmente qualquer esforço público ou privado de reanimação da economia global. A inevitabilidade de assunção por parte das famílias e empresas de carga maior de impostos visando atender os compromissos fiscais do Estado é um elemento que joga para mais distante uma eventual recuperação econômica.
Diversos fatores explicativos compõem o rol de causas do ciclo econômico. A tendência progressiva para concentração e centralização do capital (constituição de oligopólios e conglomerados), restringe a possibilidade de formação dos preços sob livre concorrência, desajustando todo o tecido econômico. A experimentação de novas combinações para a satisfação do ímpeto de acumulação também contribui decisivamente para a irrupção das crises. Os booms não são apenas simples expansão da atividade econômica, mas a consubstanciação da tentativa de novos arranjos institucionais capitaneados pela aceleração do investimento tanto privado como público. Nesse sentido, os chamados derivativos estruturados suportados por transações imobiliárias de alto risco foram bastante emblemáticos na deflagração do atual desmantelamento.
Modernamente, o investimento não é mais impulsionado pela dinâmica da renda/riqueza das famílias e empresas, mas se estrutura sobre a capacidade de endividamento desses atores sociais, refortalecendo ainda mais a prevalência do financeiro enquanto lócus privilegiado de acumulação. A indução pela superação dos limites prudenciais de endividamento provocou o colapso das subprimes e disso resultou uma inversão imediata de expectativas em que a partir da maior seletividade/cautela na concessão do crédito fez desabar a economia global com imediato expurgo do excesso de valorização patrimonial sem lastro real (ou como preferem os analistas financeiros: sobrealavancados). A adoção de medidas fiscais, por parte dos governos, surge como elemento de socorro à demanda de curto prazo, mas que comprometerão as receitas futuras ao lado de intensificar com mais força o ganho financeiro. Não me surpreenderia que, no caso brasileiro, fossem os bancos os primeiros a anunciarem que a crise já se encerrou!
Também, como salientou o reverenciado economista J. Shumpeter, outro importante fator na origem das crises reside na inexorável difusão das conquistas tecnológicas características do período do boom por todo o sistema econômico. Se na fase de boom os preços adiantam-se aos custos, o processo de vulgarização das inovações trata de inverter esse fluxo com custos cadentes, porém os preços ainda mais! Tal fenômeno enseja a paralisação dos novos investimentos, uma vez que, a produtividade marginal sobre o estoque das inversões torna-se próxima de zero ou mesmo negativa. Nesse estágio a depressão é necessariamente inevitável3. Portanto, somente a partir da explicação detalhada do fenômeno do boom nos permite construir adequada percepção sobre as causas da crise econômica.
Na agricultura o fenômeno do ciclo econômico é sobejamente conhecido. Aquele pertinente a pecuária de corte é talvez o que mais estudado foi4. Nas culturas perenes, devido ao tempo requerido para que um novo cultivo recém implantado alcance a plena produção, os ciclos são igualmente recorrentes. Normalmente os novos plantios ocorrem sob clima de forte otimismo com as perspectivas para a cultura, sendo vulgarmente conhecido como “efeito manada”. Na cafeicultura, a geada seguida de seca ocorridas na safra 1994/95 fez as cotações alcançarem patamares sem igual na década, especialmente nas safras 1995/96 até 1998/99. A rentabilidade ensejada pela cultura era um atrativo sem concorrência dentro do rol de cultivos e criações da agropecuária de então. Tivemos, naquela ocasião, o surgimento de um efeito manada sendo grande parte das lavouras com dez anos ou pouco mais, fruto desse movimento de entrada de novos produtores e lavouras.
Na atual década a cafeicultura brasileira, particularmente o arábica, tem convivido com imensas dificuldades de obtenção de rentabilidade nas explorações. Como qualquer outra atividade econômica, essa também se encontra sujeita a múltiplas flutuações cíclicas que na maior parte das situações, surgem de maneira inesperada. No café, a valorização cambial prevalecente na maior parte do período dessa década, impediu que em alguns momentos em que cotações internacionais estiveram favoráveis se traduzissem em resultados positivos para os cafeicultores. Ademais, o crescimento exponencial da oferta de robusta a preços competitivos5 também consolidou uma espécie de âncora para as cotações do arábica, mantendo seus preços em patamares menos que os satisfatórios.
A acentuação do atual ciclo depressivo das cotações do café decorre, em parte, dos avanços agronômicos associados à cultura, pois houve reconhecidamente um crescimento importante da produtividade física das lavouras com conseqüente aumento da oferta total. Pode-se argumentar que em dólares as cotações exibam relativa correção, mas essa não foi suficiente para contemplar o acentuado incremento dos custos que sob câmbio apreciado fizeram da rentabilidade algo capturado apenas pelos cafeicultores mais eficientes (acima das 30 sc/ha de média bienal) ou que foram capazes de diferenciar seu produto (certificação, gourmet e verdes especiais – Bourbon amarelo, agregação de valor por meio da torrefação e moagem).
Quando se tem por premissa que o funcionamento do sistema econômico obedece a ciclos, torna-se irrefutável a necessidade que a cafeicultura a tal movimento se adapte. O negócio precisa ser delineado/planejado prevendo-se as fases do ciclo em que as cotações situem-se próximas aos custos de produção. Não respeitada tal premissa, sobra o apelo pela tutela governamental enquanto tábua de salvação frente ao desespero da baixa rentabilidade. Ademais, outros segmentos, com lobbies mais portentosos e melhor estruturados (construção civil e indústria automobilística, por exemplo), conseguem suas vantagens antes dos demais e, encontrando-se o Estado sob limitadíssimas margens fiscais, não se deve ser otimista com a possibilidade de o segmento do café obter um socorro a altura de suas necessidades.
O APANÁGIO DA INELASTICIDADE
Esgrimir os dogmas pertence ao ofício do autêntico cientista. Discutir, portanto, a legitimidade da condição inelástica6 da demanda do café é um assunto por excelência, especialmente, por se tratar de uma caríssima premissa para os pseudoconhecedores desse mercado. Penso eu que sob a roupagem da inelasticidade se oculta o lugar comum da fácil procrastinação.
O conceito econômico de elasticidade mensura quanto uma determinada mercadoria está sujeita as variações na oferta ou procura em decorrência das variações de seus respectivos preços. São considerados inesláticos aqueles bens que sob efeito de movimentações na renda disponível, não exibem na mesma proporção de intensidade alterações no patamar da demanda. O café é tido, usualmente, como exemplo bastante característico de bem inelástico. Amparados nesse estatuto, a maior parte dos analistas (senão todos) do mercado de café assevera que não se devem esperar quedas relevantes na demanda mundial pelo produto em decorrência da crise. Todavia, não haverá limites para tal particularidade? Melhor dizendo: será que sob qualquer tipo de oscilação da renda a demanda por café permanecerá incólume?
O retrospecto do colapso financeiro seguido de crise econômica precisa ser nessa altura recuperado. O desmantelamento dos mecanismos que permitiam o financiamento do consumo estadunidense foi o estopim da ruína que se espraiou para o restante do globo. Excetuando-se os casos do Reino Unido (basicamente a estatização e a falência de bancos comerciais), foi no Leste Europeu e na Rússia que os impactos de curto prazo da crise estadunidense se fizeram sentir com maior vigor. O anêmico Japão entre a carona na economia chinesa e o fantasma da deflação, se equilibra sobre o gume da navalha. Na atualidade, porém, é a eurolândia que passou ao cabeçalho dos periódicos econômicos como pólo de concentração de severos problemas econômicos. Nessa última região, dados apontam para encolhimento de 4,5% do PIB, declínio esse que se transmite sob dramática forma de destruição líquida no estoque de empregos formais.
A crise econômica contagiou o mercado de trabalho que exibe mensalmente montante de desligamentos recordes, ou muito próximos dele, em todos os países em que esse indicador possa ser acompanhado. No Brasil, o IBGE divulgou a evolução do PIB no primeiro trimestre de 2009 contabilizando resultado negativo de 0,8% no período. Alarmante foi a queda do PIB setorial da indústria com -3,1%, compensado, parcialmente, pelo crescimento observado no segmento de serviços. É importante ressaltar que a qualidade do emprego no segmento de serviços é bastante inferior aquela praticada na indústria (somando-se vantagens e benefícios). Possivelmente, nos próximos trimestres, a economia brasileira se recuperará, minimizando o impacto doméstico da crise internacional. Também, o nosso mercado de trabalho contará com a destruição líquida do estoque de empregos, a depender do ritmo com que ocorra a almejada recuperação econômica.
Sim, há o reconhecimento generalizado de que o consumo de café sofrerá impactos da crise econômica. Naqueles mercados considerados maduros com baixo ou nenhum crescimento líquido da demanda, espera-se a parcial substituição da apreciação do produto em condição fora-do-lar pelo consumo no lar. As principais bandeiras de casas de café, por exemplo, já anunciaram a oferta de bebidas mais em conta, preparadas a partir do solúvel ou obtidos a partir de grãos em que o robusta compõe parte expressiva da liga. Assim, resvalando para a redundância, sabe-se a muito o quê acontece com o consumo quando o robusta passa a prevalecer na liga, sendo o caso alemão nesse sentido bastante emblemático: ENCOLHIMENTO DO MERCADO7.
Nos países emergentes em café (Rússia, Leste Europeu e asiáticos), a preferência dos consumidores pelo solúvel constitui-se numa realidade desses mercados. A crise econômica não apenas fortifica ainda mais a aludida preferência, como também bloqueia o natural caminho para o avanço do torrado e moído como bebida de maior apreciação. Em sendo o solúvel um produto de alto rendimento8, o aumento de sua demanda consiste numa menor procura por matéria-prima para transformação no balanço global da industrialização do produto, ou seja, menos café verde será destinado para o suprimento da torrefação refletindo-se, conseqüentemente, na redução da demanda mundial pelo produto.
Salteia-nos a impressão que as estratégias empresariais, defensivamente posicionadas, passaram a contemplar a mudança conjuntural da demanda9. O fortalecimento das marcas de produtos mais baratos e as marcas próprias das redes de varejo assumem posição de destaque nas gôndolas. Aparentemente, tais estratégias não deveriam causar maiores temores quanto à evolução do consumo, porém na medida em que se contrai o valor agregado pela cadeia, menor é a liquidez circula pelo sistema pressionando-se os mecanismos de formação das cotações com maiores perdas dentre aqueles que se posicionam enquanto passivos tomadores de preços. Ademais, sem perspectivas claras para o comportamento do câmbio (poder de compra do dólar estadunidense) associada à intensa volatilidade da cotação das commodities, tornou a decisão de imobilização de capital sob forma de estoques uma grande temeridade pelo potencial de perdas financeiras que pode causar ao empreendimento. Esses condicionantes da dinâmica empresarial são decisivos na compreensão do comportamento da demanda por café e o grau de persistência da acreditada inelasticidade sob tal contexto.
Retornando ao ambiente estadunidense o que se pode esperar para o consumo naquela esfrangalhada nação? A brutal dilapidação patrimonial das famílias propende pra uma trajetória inescapável de esforço por sua reconstituição. Desse modo, parcela significativa da renda deverá ser poupada com o intuito de recuperar o patrimônio perdido10. Se não bastasse essa cautelosa contingência, seus concidadãos não terão meios para escapar do aumento de impostos para permitir ao governo central honrar os compromissos financeiros assumidos que foram para mitigar o impacto da crise econômica. O déficit do tesouro já alcança inimagináveis 14% da receita esperada. Assim, sem lançar mão do aumento de impostos a alternativa de saldar esse rombo é causando alguma inflação o que, por sua vez, também, debilita ainda mais a renda das famílias. A verdade é que a renda está sob estresse seja por desemprego ou por outros fatores de ordem macroeconômica. Sob esses múltiplos ataques a inelasticidade do café não poderá resistir naqueles mesmos moldes com que é sempre lembrada.
Finalmente, um elemento geralmente esquecido pelos nobres colegas imbuídos pela criação de inteligência para melhor compreensão do mercado de café. Antes de se pensar qualquer modelo que contemple o consumo necessita-se reconhecer que o café não é alimento. Ao consumi-lo não se obtêm qualquer caloria necessária ao funcionamento de nosso organismo. Assim, o aviltamento da qualidade da bebida seja pela expansão do robusta na liga, seja pelo aumento da demanda do solúvel, elimina a condição básica de atração do consumidor, qual seja, a satisfação que a xícara propicia ao seu apreciador. Alienado desse atributo fundamental, beber café para a vala do produto supérfluo e dessa forma passível de ser “esquecido” da lista de compra mensal das famílias. Essa é uma percepção que se constitui numa minha contribuição aos jovens pesquisadores: compreender o comportamento do consumidor estando a renda sob estresse. Que surjam novos projetos de pesquisa!
1 O autor agradece os comentários e sugestões do colega pesquisador do IEA José Sidnei Gonçalves e Marina Brasil Rocha, além da colaboração do técnico de apoio a pesquisa Gilberto Bernardi na compilação e sistematização dos dados básicos. 2 A mediação das trocas comerciais por meio de contratos procura em alguma medida mitigar a manifestação anárquica do processo econômico. 3 A abordagem, como se percebe, é de cunho eminentemente dialética. 4 O movimento oscilatório decorre do abate das fêmeas devido a falta de rentabilidade na atividade em dado momento sendo esse procedimento a semeadura da posterior escassez de bezerros, novilhos e boi magro que promove nova fase ascensional para o ciclo. 5 O aumento da oferta de café robusta advém do incremento da produção vietnamita e do formidável progresso tecnológico observado nas lavouras capixabas. 6 O conceito de elasticidade-renda da demanda é uma medida da variação da quantidade demandada de um bem quando a renda do consumidor é alterada, mantendo-se constantes todos os outros fatores que influenciam a demanda. . 7 Existem algumas hipóteses sobre esse fenômeno no mercado sendo a mais aceita aquela que relaciona o fato com o maior teor de cafeína do robusta e a aversão fisiológica que o organismo exibe diante de uma xícara ligeiramente mais cafeinada. Tal hipótese foi pela primeira vez levantada pelo saudoso Dr. Ernesto Illy. 8 Em igual volume o solúvel prepara até 10 vezes mais xícaras que o torrado e moído. 9 Por enquanto se tratam de uma mudança conjuntural por ter por horizonte o ano fiscal de 2009. Caso a crise econômica persista por mais tempo e por conjunto expressivo de países e mercados, o fenômeno pode se tornar estrutural. 10 Para a efetividade da reconstrução do patrimônio das famílias estimativas apontam que o patamar de poupança da renda situe-se ao redor de 10% pelos próximos 10 a 15 anos.
“A única causa da depressão é a prosperidade” Clement Juglar
Celso Luis Rodrigues Vegro
é Engenheiro
Agrônomo pela Escola Superior de Agricultura "Luíz de Queiróz" -
USP/Piracicaba com especialização em Sistemas Agrários pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Concluiu mestrado em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (1992). Atualmente, atua como Pesquisador
Científico nível VI do Instituto de Economia Agrícola - IEA, da
Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios da Secretaria de
Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. Dentre as
diversas áreas de estudo, há uma concentração de trabalhos em temas
ligados à coordenação de cadeias agroindustriais, inovação
tecnológica e tendências do mercado de consumo de alimentos e
bebidas. Contato: celvegro@iea.sp.gov.br
Dados para citação bibliográfica(ABNT): VEGRO, C.L.R. Anamnese do ciclo econômico. 2009. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2009_3/anamnese/index.htm>. Acesso em:Publicado no Infobibos em 02/09/2009 |