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Produção de proteína animal: estrutura, territorialidade, desafios e perspectivas

José Sidnei Gonçalves

Newton Narciso Gomes Junior

Sueli Alves Moreira Souza

 

A produção brasileira de proteína animal compreende diversos segmentos com conformações territoriais diversas, em termos de especializações regionais e perfis estruturais diferenciados. A  cadeia de produção de carne avícola envolve mecanismos avançados de coordenação vertical mediante integração contratual e elevada concentração territorial. Compete diretamente com a seqüência de produção de carne bovina marcada pela fragilidade dos mecanismos de coordenação vertical aliada à magnitude e dispersão  do espaço geográfico.

 

De outro lado, enorme diversidade estrutural é encontrada na produção de leite e laticínios onde coexistem as pecuárias leiteiras de subsistência que produzem e comercializam leite cru; as seqüências de produção de leite, dada a atuação da agroindústria com coleta sem formalidade contratual; e as cadeias de produção de leite, dada a especificidade de coordenação vertical sólida praticadas por algumas agroindústrias em espaços determinados.

 

Mesmo no segmento das aves, o fluxo produção-consumo de ovos não contempla a existência dos mecanismos de coordenação vertical encontrados na carne avícola, existindo como seqüência de produção hegemonizada pelos grandes atacadistas.

 

Ainda nas atividades granjeiras, no fluxo produção-consumo de carne suína, podem divisar-se três condições estruturais com dimensões territoriais explícitas: a) a cadeia de produção de carne suína cujas estruturas de integração contratual são similares às da avícola; b) a suinocultura de subsistência praticada no nordeste, cujos espaços interioranos e nas regiões periurbanas das grandes cidades conformam realidades sanitárias e de manejo animal aquém do padrão de qualidade compatível com a segurança alimentar; c) a seqüência de produção de suínos, formada pelas “pocilgas e chiqueiros”, ainda que em condições sanitárias e de manejo um pouco melhores do que no caso anterior, que apresenta elevada defasagem em relação ao padrão praticado nos regimes de integração contratual.

 

No segmento de pescado, a prática de pesca continental extrativa, em níveis acima da capacidade de reposição natural, em procedimentos produtivos, assemelha-se à idéia de acumulação primitiva.  Também na pesca extrativa marítima a realidade mostra-se similar. Contudo, a prática da sobre-pesca dá-se de forma localizada em alguns espaços territoriais específicos orientados para espécies-alvo bem definidas.

 

A pesca marítima brasileira na sua maior proporção consiste numa pesca costeira (até mais ou menos 12 milhas) que não avançou para toda a dimensão da Zona Econômica Exclusiva (ZEE) do mar territorial brasileiro, nem incorporou a dimensão de pesca oceânica na escala potencial. Por fim, tem-se a aqüicultura tanto das águas continentais quanto das marinhas e, a despeito de sua imensa potencialidade, há que serem superados constrangimentos estruturais ao novel da coordenação vertical, conformando cadeias de produção estruturadas de maneira que as oportunidades se convertam em realidade.

 

Essas premissas se encaixam de forma nítida na análise do consumo e da produção de proteína animal no Brasil. Tomando em conta os padrões mais recentes, os principais elementos podem ser assim sintetizados: a) o consumo per capita de carne avícola cresce e supera o de carne bovina que apresenta queda nos últimos anos - isto numa realidade em que o consumo total de carnes, após ter crescido, se mantém no mesmo patamar nos últimos anos, o que enseja a ocorrência de substituição entre os produtos; b) do ponto de vista regional, há que se considerarem as diferenças expressivas de padrão de consumo de proteína animal - a região Norte consume mais carnes (inclusive pescado) do que as demais regiões, dadas as limitações ribeirinhas para o suprimento adequado de grãos. Nesse consumo, ocupa lugar de destaque o pescado, obtido por meio da pesca continental extrativa, o que aumenta a preocupação com a sustentabilidade dos estoques existentes.  

    

De outro lado, o consumo de leite e laticínios das regiões Sul e Sudeste, muito superior ao verificado nas demais regiões, representa um indicador fundamental a ser considerado num movimento de redução das desigualdades regionais. Deve ter-se nítido ainda que, nos anos recentes, tanto quanto o fato de a agricultura brasileira ter produzido um significativo “boom” na produção de grãos e fibras e de outros produtos como açúcar e álcool, também na produção de proteína animal essa ocorrência se manifesta.  

 

 

 Dimensão territorial da produção

 

            A dimensão territorial da produção de proteína animal decorre de características fundantes da economia brasileira e de outras construídas no processo de desenvolvimento. Dentre os grandes setores econômicos, esse aspecto configura-se como particularmente relevante na agricultura dada a sua intrínseca relação com a ocupação do espaço geográfico.

 

Destaca-se aqui o patrimonialismo como elemento determinante da territorialidade da proteína animal, mais especificamente de um dos seus segmentos que se constitui no mais relevante em extensão de terras ocupadas representado pela pecuária bovina de corte. A pecuária de corte mantém-se em expansão territorial ainda nos dias atuais centrada num processo extemporâneo e típico dos pretéritos mecanismos de acumulação primitiva.

 

            No horizonte das próximas duas décadas, quando a situação pode ganhar contornos de irreversibilidade,  quer se encontrar mecanismos que, freando o processo de acumulação primitiva, induzam o adensamento da produção nos espaços territoriais já ocupados. Com isso, abre-se espaço para a generalização da integração lavoura-pecuária com a complementaridade de atividades de alta performance.

 

O nó górdio desse processo econômico está no patrimonialismo, uma vez que dificilmente o processo será freado, enquanto os ganhos da acumulação primitiva forem mais elevados que os ganhos médios da produção pecuária. E para desmontar a lógica desse processo há que se encarar a questão da terra dentro de uma perspectiva econômica compatível com a atual quadra de desenvolvimento capitalista.

 

             

Impactos do desenvolvimento do setor

 

            Os impactos do desenvolvimento setorial sobre o território decorrem exatamente da perversidade do processo de acumulação primitiva acima descrita, contraditoriamente estimulada pelos incentivos fiscais e os mecanismos de “guerra fiscal” que literalmente retiram a governabilidade estatal sobre o espaço territorial. Isso fica nítido quando se visualiza a dinâmica do circuito pecuário, e mesmo para os deslocamentos das produções “organizadas” de proteína animal que deixam alguns espaços e avançam sobre outros na trilha das distorções alocativas derivadas da guerra fiscal e outros instrumentos de expansão da fronteira agropecuária.

 

 Quando esses mecanismos forjam a estrutura relevante da produção agropecuária brasileira, não faz qualquer sentido pensar-se em consistência de políticas de desenvolvimento territorial, na medida em que os espaços deprimidos assim se constituíram exatamente como produto da lógica perversa da agricultura itinerante. A capacidade setorial de organizar o território conforma-se como elevada e determinante das decisões de políticas públicas.

 

Dadas as limitações fiscais, as decisões públicas vem sendo caudatárias das reivindicações setoriais, independente das respectivas lógicas. Tendo como base os dois mecanismos econômicos fundamentais para a organização territorial, pode-se definir de forma mais clara o desenho das ações governamentais: a) os impactos territoriais derivados da reprodução dos mecanismos pretéritos de acumulação primitiva que ensejam a ampliação dos espaços territoriais nas fronteiras de expansão, gerando “novos eldorados” como o grande circuito brasileiro da pecuária de corte; b) aqueles advindos da expansão de cadeias de produção plenas, que, em face de seus respectivos mecanismos consistentes de coordenação vertical como a integração vertical ou contratual, desenham seus respectivos espaços territoriais e exercem dominância sobre os mesmos, como as atividades granjeiras e estabuladas das quais se  destaca a cadeia de produção de carne avícola; c) outros impactos nos territórios derivados de políticas públicas de compensação regional, buscando criar mecanismos fiscais e de financiamento que elevem a atratividade dos investimentos produtivos em “espaços marginais” ou em “antigos territórios” como se configuram os clusters do camarão marinho potiguar e do mexilhão catarinense.

 

A produção brasileira de proteína animal no seu processo de desenvolvimento desenvolveu pontos fortes que sustentam as apostas quanto às perspectivas de futuro, ao mesmo tempo em que convive com pontos fracos que peiam os movimentos de avanços, fazendo-os lentos e menos pronunciados. A leitura conjunta dos mesmos revela que a concretização do futuro depende da consistência das políticas públicas e de uma presença ativa do Estado, ainda que não seja exatamente o que se pode esperar do aparelho estatal que aí está. O desenvolvimento depende da ação regulatória consistente, executada por agências públicas muito distintas daquelas concebidas e que foram fundamentais para os avanços concretizados pelas transformações estruturais realizadas até o final dos anos 1970 sob a égide do Estado Desenvolvimentista.

 

             Em qualquer atividade econômica brasileira associada de maneira intrínseca à ocupação do espaço, como a agricultura em geral e a produção de proteína animal, há que se destacar elementos econômicos portadores de estímulo ao conflito federativo e à ampliação de distorções alocativas. Isto, antes de enumerar as possibilidades da contribuição setorial para a coesão nacional e a redução das desigualdades regionais com a promoção de desconcentração do processo de desenvolvimento, sem que tenham contribuído de forma decisiva para minorar as desigualdades de oportunidades entre pessoas.

 

O transplante de uma estrutura produtiva complexa e moderna para um dado espaço territorial, com a substituição quase completa da produção original antes encontrada nesse território, pode ensejar um aprofundamento das disparidades entre as pessoas, ainda que contribua para a redução das diferenças entre as regiões brasileiras. Daí há que se considerar numa primeira verificação a qualidade da transformação estrutural realizada no que diz respeito à ampliação das oportunidades para as populações residentes nesses territórios e quais os impactos nas respectivas qualidades de vida.

 

Outras questões produtoras de ampliação dos conflitos federativos, que por isso mesmo jogam contra as capacidades setoriais de promover a coesão nacional, estão nos mecanismos utilizados para a realização dessas políticas territoriais. A criação de vantagens competitivas artificiais produz a exacerbação do conflito federativo, que tem avançado para a perda de competitividade dada a nova geração de “antídotos fiscais” pelas unidades da federação perdedoras de atividades econômicas, porque calcada não na potencialização de vantagens comparativas ou na superação de obstáculo estrutural ao desenvolvimento, com base em mecanismos da “guerra fiscal” e de incentivos fiscais.

 

A ampliação das possibilidades da “guerra sanitária”, que pode evoluir para uma “guerra de barreiras não-tarifárias”, é um capítulo que se está abrindo e que tende a acirrar esse conflito federativo, podendo constituir-se numa poderosa resposta das unidades da federação vítimas da “guerra fiscal”. A regulação da qualidade de produtos e processos brasileira mostra-se tão anacrônica em conteúdo e concepção estruturais quanto o sistema tributário nacional no qual vige o princípio da origem em tributos sobre o valor adicionado. Tão relevante quanto desembaraçar o emaranhado legal da estrutura tributária, que configura na verdade tantas normas tributárias incidentes sobre o fluxo da produção ao consumo da agropecuária, é fazer o mesmo procedimento com a regulação da qualidade de produtos e processos.

 

Essas duas reformas institucionais são alicerces à edificação de um novo pacto federativo que promova maior coesão nacional, reduzindo os elementos motores do conflito federativo.

 

 

Perspectiva da produção

 

O grande enigma para construir um cenário de futuro com mínimo de consistência para a agropecuária brasileira, na dimensão da territorialidade envolvida, está em projetar uma realidade para as frentes de expansão. Isto porque simplesmente projetar o que vem ocorrendo significa não levar em conta implicações fundamentais, ou seja: a) como se desdobrarão os impactos das madeireiras nas frentes de expansão?; e b) qual o real significado da concretização de uma reforma tributária “não fiscalista”, que foque também a necessidade de promover maior ordenamento econômico entre as atividades, em especial no seu sentido territorial?

 

               Na vigência desse ambiente econômico e institucional que devolva de forma plena ao segmento produtivo a capacidade de construir as bases de sua reprodução, os elementos formadores de futuro na produção brasileira de proteína animal - numa agricultura submetida aos desígnios do padrão agrário inerente à 2ª Revolução Industrial - estariam sustentados (a) pela qualidade dos mecanismos de coordenação vertical, forjando cadeias de produção plenas, seja pela integração vertical seja pela integração contratual como no caso da carne avícola; (b) pelo avanço da concentração produtiva com intensificação da especialização regional, movimento típico do padrão agrário onde os ganhos de escala, em especial na logística, determinam a competitividade dos segmentos produtivos, como elementos determinantes da obtenção de vantagens em termos não apenas de custos de produção, como principalmente de custos de transação; e (c) pela maior expressão das dimensões da singularidade e da complementaridade na conformação das vantagens competitivas territoriais.

 

              A configuração das oportunidades e dos desafios setoriais, que condicionam os fatos portadores de futuro para a produção brasileira de proteína animal, pode determinar a concretização precoce ou com atraso das potencialidades setoriais, conformando as possibilidades de confirmação das projeções realizadas no horizonte temporal definido. Mas essas oportunidades e desafios – é preciso ressaltar - respondem a elementos mais amplos que caracterizam a estrutura da sociedade e da economia brasileiras, cujo ritmo das mudanças não está aqui considerado.

 

A concretização das oportunidades e desafios colocados para a produção brasileira de proteína animal, no horizonte das próximas duas décadas, envolve uma imensa e diversa gama de atores sociais e instituições, muitos dos quais devam enfrentar internamente mudanças de concepção organizacional, de conteúdo programático e mesmo de escopo operacional. A construção de uma resultante de correlação de forças convergentes para a concretização da maior parcela das oportunidades e da superação dos desafios condiciona a magnitude do desenvolvimento setorial e a dimensão dos resultados produtivos produzidos.

 


José Sidnei Gonçalves
Pesquisador do IEA-APTA-SAA

sydy@iea.sp.gov.vr

 

Newton Narciso Gomes Junior

Professor Visitante da Faculdade de Engenharia e Medicina Veterinária da Universidade de Brasília (UNB)

swnewtongomes@gmail.com
 

Sueli Alves Moreira Souza

Pesquisador do IEA-APTA-SAA

sueli@iea.sp.gov.vr



Reprodução autorizada desde que citado a autoria e a fonte


Dados para citação bibliográfica(ABNT):

GONÇALVES, J.S.; GOMES JUNIOR, N.N.; SOUZA, S.A.M.  Produção de proteína animal: estrutura, territorialidade, desafios e perspectivas. 2009. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2009_2/ProteinaAnimal/index.htm>. Acesso em:


Publicado no Infobibos em 12/05/2009

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