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A economia, o leite das crianças e o tal deflator?

José Sidnei Gonçalves

Luiz Henrique Perez

Sueli Alves Moreira Souza

 

Na era da informação propagada em tempo real na sociedade de massas, que rompe as barreiras e os limites das distâncias, a opinião pública vem sendo bombardeada por um imenso rol de estatísticas que tratam da economia e dos preços em geral. Muitas vezes, no mesmo noticiário televisivo ou na imprensa escrita tem-se sobre o mesmo tema e o mesmo indicador análises que apresentam perspectivas radicalmente opostas para a realidade. Os não-iniciados não sabem como refletir sobre o que foi noticiado, ficando perplexos e, na maioria das vezes, com a opinião que mais os favorece.

 

Entretanto, há que se ter maior consistência no tratamento das informações, em especial aquelas apresentadas pelos círculos acadêmicos, dado que normalmente vêm com a auréola do conteúdo científico, muitas vezes reproduzidas como verdades quase absolutas, sem margem para contestação. Contudo, não é sempre assim, dado o descuido com os procedimentos consistentes necessários para se verificarem séries temporais, sem o que não há como comparar tempos históricos distintos. Uma rápida visita a programas televisivos que tratam de economia, uma leitura rápida dos cadernos de economia dos grandes jornais e, por que não, uma consulta a revistas técnicas - e mesmo científicas - de instituições econômicas permite carrear inúmeros exemplos do fato aqui levantado.

 

Tome-se o exemplo do Produto Interno Bruto (PIB), indicador que permite verificar a evolução anual da riqueza produzida. Num país com um passado recente de inflação não apenas elevada, mas também com picos e quedas abruptas em função de vários planos econômicos, como é o caso brasileiro, a comparação temporal para se verificar o comportamento da economia não pode ser feita com base no PIB expresso em valores correntes, ou seja, tomados pelo poder de compra da moeda brasileira em cada ano. No período 1990-2006, o PIB em valores correntes de cada ano mostraria um aumento descomunal da riqueza produzida (figura 1). Tanto que por esse indicador, tomado dessa forma, a economia nacional parece ter sua existência somente no período posterior a 1994, quando foi editado o denominado Plano Real que, rompendo com as tendências inerciais dos preços, deu maior estabilidade à economia brasileira.

 

Figura 1. Produto Interno Bruto (PIB) expresso em valores correntes (R$milhões), Brasil, 1990-2006.

Fonte: dados originários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), obtidos no site www.ipeadata.gov.br.

 

É óbvio que a existência da economia brasileira data de mais do que o período pós-1994, apesar de que para alguns antes disso teríamos a pré-história. Na esperança de contornar esse problema de comparação de informações no tempo, muitos lançam mão do artifício de converter os valores correntes expressos em moeda brasileira para valores correntes expressos em moeda norte-americana. O argumento estaria no fato de que os preços expressos em dólar expressariam realidade mais estável e, por isso mesmo, permitiria comparação temporal consistente. Uma das vantagens seria permitir que esse indicador pudesse ser cotejado com o de outras nações, nas mesmas bases. Entretanto, quando se avaliam os resultados, o que se tem é um comportamento ciclo-tímico dos indicadores, refletindo três momentos da política cambial: antes do Plano Real, o câmbio fixo no Plano Real e o câmbio flutuante pós-1999 (figura 2).

 

Figura 2. Produto Interno Bruto (PIB) expresso em valores correntes (US$milhões), Brasil, 1990-2006. Fonte: dados de PIB originários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), transformados para dólar pela taxa de câmbio (R$/US$) média de cada ano, representando cotação comercial para compra no fim do período, conforme dados do Banco Central do Brasil.

Fonte: Todos os dados básicos foram obtidos no site www.ipeadata.gov.br.

 

 As condições de exposição externa da economia brasileira, que se alteraram de forma drástica nesses três períodos, acabaram por produzir resultados tão distintos da política de câmbio, revelando que não se tem uma  taxa de câmbio neutra compatível com a possibilidade de transformação do PIB para que a análise seja feita em dólar. Noutras palavras, com valores do dólar em moeda nacional determinados de maneiras diferentes em cada período, a moeda norte-americana não pode ser utilizada como deflator compatível com a análise do comportamento da economia, pois o que se mede revela mais o comportamento do dólar.

 

O PIB corrente expresso em moeda norte-americana revela o poder de compra da economia brasileira no mercado internacional. Pouco esclarece sobre a dinâmica interna da economia brasileira.  Como a taxa de câmbio em valores correntes não representa um deflator adequado, há que se procurar algum que permita comparar-se poder de compra no tempo e, com isso, possibilitar a compreensão adequada da dinâmica da evolução da economia nacional no que diz respeito ao produto nacional (PIB). O deflator corresponde a um multiplicador obtido, a partir de um dado índice, que corrige as distorções de alteração do poder de compra de dada unidade monetária no tempo.

 

Para contas nacionais globais como o indicador de riqueza produzida, a alternativa mais adequada para a maioria das análises que se pretende efetuar consiste no deflator implícito do PIB. Aplicado esse procedimento, obtém-se o PIB a valores constantes (no caso, a preços médios de 2006) que mostra com maior precisão a evolução da produção brasileira de riqueza no tempo, revelando que, após a estagnação do triênio 1990-1992, se visualiza uma tendência de crescimento em todo período 1993-2006 (figura 3). O que se quer pontuar aqui consiste no fato de que os resultados obtidos estão muito mais compatíveis com a realidade, exatamente pela qualidade do deflator.

 

Figura 3. Produto Interno Bruto (PIB) expresso em valores constantes médios de 2006 (R$ milhões), Brasil, 1990-2006. Fonte: dados de PIB e de deflator implícito originários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Fonte: Todos os dados básicos foram obtidos no site www.ipeadata.gov.br.

 

A comparação do PIB expresso em valores constantes, mas transformado em moeda estrangeira – por exemplo, o dólar -, exige cuidados para que o indicador obtido reflita o que se quer mostrar. Se a idéia consiste em vislumbrar a evolução no tempo, uma alternativa poderia ser a utilização do câmbio médio de dado tempo. Com isso, pode-se obter o PIB em valor constante expresso em dólar, que no caso não apenas corresponde ao dólar médio de 2006, como também a preços médios de 2006 pelo deflator implícito. O resultado obtido não apenas tem a mesma tendência do PIB em valores constantes expresso em moeda brasileira, como também expressa em valores absolutos as condições de poder de compra internacional da moeda brasileira em dado período fixado (média de 2006) (figura 4). Caso se tenha interesse em variar os distintos poderes de compra em função dos patamares de câmbio, basta alterar o período-base determinado para o câmbio.

 

Figura 4. Produto Interno Bruto (PIB) expresso em valores constantes médios de 2006 (US$ milhões),  Brasil, 1990-2006. Fonte: dados de PIB e de deflator implícito originários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), transformados para dólar pela taxa de câmbio (R$/US$) média de cada ano, representando cotação comercial para compra no fim do período, conforme dados do Banco Central do Brasil.

Fonte: Todos os dados básicos foram obtidos no site www.ipeadata.gov.br.

 

Os diferentes resultados obtidos para o mesmo indicador de PIB, alterando-se o deflator, mostram o cuidado que se deve ter em utilizar e analisar a economia numa realidade nacional em que os regimes inflacionários não apenas apresentam amplitudes significativas de mudanças nos preços, como também utilizam mecanismos cambiais e políticas comerciais com enormes diferenças de paradigmas. Esse cuidado se mostra uma exigência da própria construção e fortalecimento da democracia brasileira, consolidando uma cidadania com base numa insignificante assimetria de informações. Apenas informações consistentes porque adequadamente processadas e uma discussão transparente permitirão a formação de uma opinião pública que produza decisões políticas condizentes com os anseios da sociedade. O mais grave não está na incorreção dos tratamentos das informações que acabam formando indicadores distorcidos. O problema está nos interesses que sustentam essas incorreções. E muitas delas não são neutras da ótica da origem.

 

A qualidade dos deflatores também representa uma questão a ser discutida. Isso porque não basta saber deflacionar, mas com base em que índice se constrói o deflator. A opinião pública nesse caso também pode ficar literalmente “vendida” quando se defronta com resultados analíticos antagônicos para a mesma tendência de preços expressos em valores constantes. Mais uma vez a gravidade pode estar no interesse oculto atrás da escolha realizada. Tome-se a evolução dos preços do leite das crianças (leite C) para a média do Estado de São Paulo. Em termos de preços médios recebidos pelos pecuaristas, tem-se uma nítida tendência de queda no período 1990-2006, de R$ 1,10/litro para R$ 0,50/litro, quando expressos em valores constantes de agosto de 2007, com base no deflator obtido a partir do Índice Geral de Preços - Disponibilidade Interna (IGP-DI) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) (figura 5). Por esse indicador, o pecuarista teria expressiva perda econômica, recebendo preços muito baixos no período recente. Isso sustentaria a necessidade de aceitar-se como recomposição do poder aquisitivo as recentes majorações dos preços do leite.

       

Figura 5. Preços recebidos pelos produtores de leite C no Estado de São Paulo, médias anuais do período 1990-2006.
Fonte: Dados originários do Instituto de Economia Agrícola (IEA) deflacionados pelo Índice Geral de Preços- Disponibilidade Interna (IGP-DI) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pelo Índice de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

 

Entretanto, os preços são constantes, com magnitudes de variação muito diferentes, quando se altera o deflator com a utilização do Índice de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso porque os  preços recebidos pelos pecuaristas, que mostram oscilação em torno do patamar de R$ 0,60/litro no período 1990-1995, apresentam diminuição para níveis próximos a R$ 0,50/litro em todo período 1996-2006 (figura 5). Nesse quadro, não apenas a tendência de queda não se constitui tão pronunciada como também deve ser ressaltado o fato de que, desde a consolidação do controle da inflação, há uma manutenção dos preços de leite C recebidos pelos pecuaristas. Fica nítido que, com sustentação no IPCA como deflator, tanto a magnitude do problema de renda no campo quanto o arcabouço das políticas públicas setoriais se mostram diferentes do que seria propugnado se o diagnóstico tivesse como base preços deflacionados pelo IGP-DI.

 

Não se trata aqui, pela exigüidade de espaço, de realizar a comparação da consistência do IGP-DI em relação ao IPCA[i]. Mas não há como fugir da conclusão de que o IPCA se mostra mais adequado para a análise de preços agropecuários, uma vez que um segmento que tivesse tal perda de renda via preços teria reduzido de forma dramática a oferta do produto e quase desaparecido no tempo de mais de uma década e meia. E não foi isso que ocorreu com a produção brasileira de leite, que aumentou de maneira significativa no período. Mais uma vez, na maioria dos casos não se trata de mera opção de deflator, mas de interesses que sustentam dado objetivo analítico que produz alta assimetria de informações e confusão da opinião do público a respeito da questão dos preços do leite.

 

Por fim, um elemento fundamental para o fortalecimento da democracia, com base numa cidadania de elevada consciência das questões econômicas, consiste em abastecer  a opinião pública de análises sustentadas em indicadores compatíveis com a realidade que se pretenda averiguar. Isso vale tanto para o desenvolvimento da economia como um todo, com base na mensuração da evolução da riqueza nacional produzida, quanto para a inserção cidadã do consumidor e demais agentes econômicos no debate a respeito de problemas nada prosaicos como o leite das crianças. Se a análise temporal não for feita com sustentação em deflator consistente, a verificação da realidade será fator delator de falta de aderência, podendo mesmo evidenciar que interesses levaram a tal procedimento. O mínimo que se espera é a busca de transparência com base no aprimoramento das informações veiculadas nos meios de comunicação de massa e mesmo nas veiculações técnico-científicas.

 

Origem: Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios - APTA - www.apta.sp.gov.br


José Sidnei Gonçalves possui graduação em Engenharia Agronômica pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1983) e doutorado em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (1992) . Atualmente é PESQUISADOR CIENTÍFICO VI do INSTITUTO DE ECONOMIA AGRÍCOLA. Tem experiência na área de Economia , com ênfase em Teoria Econômica. Atuando principalmente nos seguintes temas: Desenvolvimento Econômico, Questão Agrária, Economia Política, Estrutura de Mercado, História Econômica e Progresso Técnico.
(Texto gerado automaticamente pela aplicação CVLattes)

sydy@iea.sp.gov.br
 

Luiz Henrique Perez é Pesquisador Científico do Instituto de Economia Agrícola (IEA-APTA)

lhperez@iea.sp.gov.br
 

Sueli Alves Moreira Souza é Pesquisadora Científica do Instituto de Economia Agrícola (IEA-APTA

sueli@iea.sp.gov.br



Reprodução autorizada desde que citado a autoria e a fonte


Dados para citação bibliográfica(ABNT):

GONÇALVES, J.S.; PEREZ, L.H.; SOUZA, S.A.M. A economia, o leite das crianças e o tal deflator?. 2008. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2008_3/Deflator/index.htm>. Acesso em:


Publicado no Infobibos em 13/08/2008

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