Brasil fortalece proteção à biodiversidade nativa com normas sobre depósito de patentes por José Manuel Cabral de Sousa Dias Atos do CGEN e do INPI determinam que pedidos de patentes que usem a biodiversidade brasileira devem seguir a legislação de acesso a recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados. A velocidade e a profundidade das inovações tecnológicas, que estão modificando o mundo, têm trazido à discussão a utilização dos recursos biológicos de um país ou região em outros locais, sem que a permissão ou o conhecimento dos povos ou nações que, segundo a Convenção da Diversidade Biológica, são os detentores naturais dos direitos de exploração desses recursos.
A essa utilização indevida chama-se biopirataria. De modo geral, o termo significa: “a apropriação de recursos genéticos e/ou conhecimentos de comunidades tradicionais, por indivíduos ou por instituições que procuram o controle exclusivo ou monopólio sobre estes recursos e conhecimentos, sem autorização estatal ou das comunidades detentoras destes conhecimentos e sem a repartição justa e eqüitativa de benefícios oriundos destes acessos e apropriações”. (1)
A discussão em questão comporta, dentre outras, uma dimensão sociológica e outra econômica. No primeiro aspecto, deve-se considerar que as nações e os seus agrupamentos sociais têm o direito de utilizar seus recursos naturais e biológicos de acordo com a sua própria vontade, em um processo intuitivo ou planejado de autodeterminação, que lhes reserva a possibilidade de utilizar tais recursos e conhecimentos em proveito próprio. Se não houver a vontade de compartilhar os recursos biológicos, a legislação brasileira protege tal procedimento, ao estabelecer a necessidade de obtenção de consentimento prévio para a realização de coletas de materiais biológicos e o estabelecimento de contratos de repartição de benefícios. A dimensão econômica inicia-se, justamente, na obrigação da repartição dos benefícios econômicos auferidos com as comunidades tradicionais (índios, quilombolas, ribeirinhos, caiçaras, caipiras, castanheiros, seringueiros, etc.) detentoras dos recursos biológicos ou dos conhecimentos a eles associados.
Diversos exemplos recentes demonstram a necessidade de adequação da legislação e dos procedimentos, em escala global, para prevenir e, até mesmo, coibir a utilização indevida de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados. O caso mais emblemático foi o registro do nome “cupuaçu” como marca por uma grande empresa japonesa, no Japão, na Comunidade Européia e nos Estados Unidos. O registro no Japão foi cancelado, após a interposição de recurso administrativo por organizações não-governamentais brasileiras. Edson Beas Rodrigues Jr descreve com precisão os diversos procedimentos que levaram a essa vitória no artigo “A quem pertence o cupuaçu” (2). Também o registro da marca açaí foi concedido, no Japão, a outra empresa alimentícia, mas, com interveniência do GIPI (Grupo Interministerial da Propriedade Intelectual) e do Ministério das Relações Exteriores, foi recentemente cancelado.
Em atitude louvável e preventiva, o GIPI elaborou a “Lista Não-Exaustiva de Nomes Associados à Biodiversidade de Uso Costumeiro no Brasil” , que contém cerca de 3000 nomes científicos de espécies vegetais, com cerca de 5.000 nomes comuns e suas variantes. Nem todas as espécies são nativas do Brasil, “mas espécies que são usadas ou comercializadas no País e que, portanto, podem sofrer desse problema de registro indevido do nome comum como marca no exterior” (3)
Esta “Lista não exaustiva...” foi distribuída pelos canais diplomáticos aos escritórios de registro de marcas dos outros países e a organizações de âmbito internacional como a OMPI – Organização Mundial da Propriedade Industrial – para evitar que o examinador de marcas no exterior conceda o uso de nomes comuns já utilizados no Brasil como marcas exclusivas, bem como servir de elemento de defesa em eventuais procedimentos administrativos ou judiciais para cancelamento ou indeferimento de solicitações, em situações consideradas indevidas pelas autoridades brasileiras ou por organizações da sociedade civil. A questão patentária tem motivos e escopo diversos e a Lista acima mencionada com ela não interfere. Deve-se lembrar que também causou forte reação na sociedade brasileira e, particularmente, nas comunidades amazônicas, o fato da empresa que tentou registrar a marca cupuaçu tenha solicitado uma patente de fabricação de um preparado das amêndoas dessa mesma fruta, denominado “cupulate”, no Japão, nos Estados Unidos e na Comunidade Européia, uma vez que o produto e o respectivo processo de fabricação foram desenvolvidos pela Embrapa e a solicitação de patente foi apresentada ao INPI em 1996. A jornalista Marita Cardillo conta que após diversas gestões dos advogados e técnicos da Gerência de Propriedade Intelectual da Embrapa, o escritório de Patentes do Japão decidiu não conceder a patente à empresa japonesa, por falta de ineditismo (4) e não por que a matéria prima original fosse amazônica. A defesa da propriedade intelectual e dos direitos correlatos aos recursos genéticos autóctones de cada país ou região constituiu-se em uma das principais discussões da Oitava Conferência das Partes da Convenção sobre a Diversidade Biológica - COP8 – em Curitiba (PR), em março de 2006. Não houve acordo sobre o tema, mas os 188 países participantes da COP8 concordaram em estabelecer um Grupo de Trabalho para apresentar proposta previamente discutida em 2010, por ocasião da 10ª COP. Buscando antecipar-se às discussões deste Grupo de Trabalho, o Brasil estabeleceu normas internas de prevenção da biopirataria, por meio de Resoluções - nº 23 do CGEN – Conselho de Gestão do Patrimônio Genético - e 134/06 do INPI – Instituto Nacional da Propriedade Industrial -, com a clara intenção de obrigar as pessoas físicas e jurídicas a cumprir a legislação brasileira de acesso a recursos genéticos.
A Resolução do CGEN nº 23, de 10 de novembro de 2006, é, em si, bem simples: regulamenta o artigo 31 da Medida Provisória nº 2.186-16 de 23 de agosto de 2001 (a MP do “acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado”) e disciplina a forma de comprovação da observância da MP para fins de concessão de patentes pelo INPI. A resolução do CGEN estabelece que “o requerente de pedido de patente de invenção de produto ou processo resultante do acesso a componente do patrimônio genético realizado desde 30 de junho de 2000, depositado a partir da data da publicação desta Resolução, deverá declarar ao INPI que cumpriu as determinações da MP, bem como informar o número e a data da Autorização de Acesso correspondente” (5).
É clara a intenção da citada resolução: assegurar que os pedidos de patentes que utilizem componentes da biodiversidade nacional cumpram a legislação vigente no país, que determina que o acesso a recursos genéticos nativos ou aos conhecimentos a eles associados com finalidade de desenvolvimento tecnológico só poderá ser efetuado com autorização prévia do IBAMA ou do CGEN.
O INPI, em consonância com a Resolução do CGEN, editou a Resolução nº 134/06, de 13 de dezembro de 2006, estabelecendo procedimentos para adequação ao cumprimento das determinações do CGEN, instruindo aos requerentes de patentes como efetuar a declaração “se o objeto do pedido de patente foi obtido, ou não, em decorrência de um acesso a amostra de componente do patrimônio genético nacional, realizado a partir de 30 de junho de 2000”. Tanto a resolução do CGEN, quanto a do INPI estabeleceram as respectivas vigências a partir de 02 de janeiro de 2007.
A data de 30 de junho de 2000, constante das resoluções do CGEN e do INPI é a data da edição da primeira versão da MP 2.186, sendo, portanto, a data em que o marco legal do acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais associados foi instituído no Brasil. O lapso temporal em que não houve a aplicação da legislação imposta pelo Artigo 31 da Medida Provisória, levou à necessidade de criação de uma situação de transição, em que os requerentes de pedidos de patentes depositados entre 30/06/2000 e 01/01/2007 que fizeram acesso a amostras do patrimônio genético deverão apresentar ao INPI (sem necessidade de notificação adicional por parte do Instituto) um formulário específico com a declaração de que foram cumpridas as determinações da MP 2.186-16. O formulário foi instituído pela Resolução nº 134/06 do INPI e a ela está anexo (6)
As resoluções e procedimentos citados valem apenas no território nacional, para pessoas físicas ou jurídicas, brasileiras ou estrangeiras, que desejem aqui depositar patentes. Entretanto, nas negociações internacionais e na defesa das posições brasileiras e dos outros países megadiversos (Índia, China, Malásia, África do Sul, etc.), estas determinações legais serão de grande importância e permitirão que o Brasil solicite aos demais países, pobres e ricos, que adotem medidas semelhantes, em defesa do uso inadequado de recursos genéticos de um país em outro. Será forte argumento de combate à biopirataria.
A adoção desse tipo de medida em nível internacional poderá ter como conseqüência, o deslocamento para o Brasil de empresas farmacêuticas ou biotecnológicas ou de seus laboratórios de bioprospecção que, cumprindo a legislação brasileira, descobrirão e patentearão novos princípios ativos, genes e funções biológicas. Transformadas em produtos e processos, essas inovações gerarão receitas, tanto nos mercados internos quanto nos externos, não só pela venda dos produtos e utilização dos processos, mas também pela repartição de benefícios pelo uso de conhecimentos tradicionais associados à diversidade biológica autóctone.
As instituições brasileiras, públicas e privadas, também se defrontam com a obrigação de cumprir a lei e com o desafio de incrementar a capacidade de bioprospecção de elementos da biodiversidade nativa, para que os recursos financeiros gerados com a exploração da mesma permaneçam prioritariamente no Brasil, aqui gerando maior dinamismo da economia nacional e transformando-se em melhor qualidade de vida da população brasileira.
REFERÊNCIAS (1) Biopirataria, www.biopirataria.org , consultado em 21/02/07(2) Rodrigues Jr. E. B., A quem pertence o Cupuaçu? http://www.biopirataria.org/more.php?id=67_0_7_0_M, consultado em 21/02/07(3) GIPI - Grupo Interministerial da Propriedade Industrial; Lista Não-Exaustiva de Nomes Associados à Biodiversidade de Uso Costumeiro no Brasil. www.desenvolvimento.gov.br/arquivo/sti/publicacoes/lisBiodiversidade/ListaBiodivBrasilVer1.pdf, consultado em 21/02/2007.(4) Cardillo, M. Japão reconhece invenção da Embrapa, www.embrapa.br/noticias/banco_de_noticias/2004/marco/bn.20041125.7537041642/mostra_noticia, consultado em 25/02/07 (5) CGEN, Resolução Nº 23 de 10 de novembro de 2006. www.mma.gov.br/estruturas/sbf_dpg/_arquivo/res23.pdf , consultado em 15/02/07 (6) INPI – Resolução Nº 134/06 de 13 de novembro de 2006. www.Inpi.gov.br/legislacao/resolucoes/res_134_06.html , consultado em 15/02/07
Reprodução autorizada desde que citadas a autoria e a fonte Dados para citação bibliográfica(ABNT):
SOUZA DIAS, J.M.C. de
Brasil fortalece proteção à biodiversidade nativa
com normas sobre depósito de patentes.
2007. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2007_1/biodiversidade/index.htm>.
Acesso em:
Publicado no Infobibos em 07/03/2007 |