Defesa Sanitária como parte da Qualidade de Produtos e Processos*
por José
Sidnei Gonçalves
As diversas propostas
sobre as questões de produtos e processos, presentes na agenda em
especial de 2006, mostram que, em regra, não há uma compreensão
adequada da institucionalidade - e com a profundidade necessária -
de temas setoriais estratégicos para o desenvolvimento da
agricultura.
As transformações produtivas, que foram tremendas desde
os anos 1960, levaram à superação de antigos obstáculos ao
desenvolvimento e colocaram outros na agenda. E essa nova agenda
exige outra concepção de intervenção estatal, centrada em outros
pressupostos e assentada sobre outra institucionalidade. Esse é o
caso da qualidade de produtos e processos1.
O debate sobre os temas emergentes tem sido refém do
atraso conceitual e institucional. Na verdade, o poderoso aparato
estatal estruturado para realizar a modernização agropecuária ainda
condiciona as argumentações e vem sufocando a emergência do novo.
Vai e vem e as postulações trazem elementos que parecem vislumbrar
avanços mas os submete à velha e arcaica estrutura institucional
desenhada para o ciclo anterior nessa perspectiva de desenvolvimento
da agricultura2.
Uma questão em que menos houve avanços foi exatamente a
qualidade de produtos e processos, crucial para a sustentação da
competitividade externa da agricultura brasileira. Esta, pela
multiplicação de barreiras de cunho não-tarifário, vem ganhando
expressão e já faz as primeiras vítimas3.
Nada mais peada pelo atraso que a discussão sobre
qualidade de produtos e processos. Desde logo, as antigas estruturas
do aparelho de estado tentam dominar essa temática moderna e nova,
bem como submetê-la aos seus desígnios, sem ter nítido que isso não
se mostra possível por concepção.
Tanto assim que se tem tratado de políticas de defesa
agropecuária, ou seja, do particular, sem atentar para o espectro
mais amplo dos predicados da qualidade que isso exige. Na verdade,
não se construiu uma aparato regulatório consistente com a qualidade
de produtos e processos, que envolva legislação, institucionalidade
e competências dos entes federativos. E persistem atuações tópicas e
episódicas.
Por certo, a sanidade animal não se resume à aftosa como
a sanidade vegetal não se resume a cancro cítrico, principais ações
federais. Nem essa intervenção pode ficar ao sabor da relevância
econômica, que traz para a primeira prioridade uma possibilidade de
a gripe aviária atingir a avicultura brasileira. E nem simplesmente
ignorar a Sigatoka Negra que atingiu os bananais do Vale do Ribeira,
com enormes impactos para os pequenos e médios produtores da região
que ostentam os piores indicadores econômicos e sociais paulistas.
Há que se avançar na institucionalidade, de maneira a
formar uma concepção nacional, compatível com os padrões
internacionais, e assumir a qualidade de produtos e processos como
requisito vital, indo muito além da visão de Estado
Desenvolvimentista para construir o novo Estado da Regulação. Assim
como as agências reguladoras formam o novo aparato estatal noutros
segmentos econômicos relevantes, é preciso fazer o mesmo com a
qualidade de produtos e processos.
Trata-se de uma estratégia nacional de inserção
competitiva com lastro na qualidade de produtos e processos. Esta
implica na certificação de qualidade com rastreabilidade adequada
numa visão de 'food safety', e não apenas de atuar em defesa
sanitária, restringindo-se ao conceito de edificação de 'zonas
livres de febre aftosa' e outras moléstias.
Uma imensidão de exemplos, que revelam a inoperância e a
inconsistência das atuações federal e estaduais nessa questão da
qualidade de produtos e processos, pode ser enumerada. Vejam-se
alguns para não ficar no vazio. A regulação dos transgênicos
mostra-se mais relevante que a da aplicação de defensivos
agropecuários? Têm-se uma emperrada estrutura de análise e
regramento para a criação e o uso comercial de transgênicos, mas
nenhuma que ordene o uso de defensivos agropecuários, a não ser um
oneroso e emperrado processo de registro de produtos.
Aí surge um princípio norteador, que coloca a garantia
de qualidade, incluindo o poder de polícia, como uma função precípua
e indelegável do Estado. Por isso, não pode ser pensada como a
constituição de estrutura pública financiada, como atualmente, em
grande parte, por taxas que encarecem os produtos e dificultam a
adoção de processos.
Os maiores penalizados são exatamente os menores
empreendimentos. Há que se forjar racionalidade na concepção da
estrutura de taxas, compatível com a capacidade de arcar com os
respectivos custos, bem como das exigências das políticas de defesa
da qualidade para que não inibam a adoção generalizada de boas
práticas de produção e de processamento.
De outro lado, nessa escuridão propiciada pelo embate
ideológico ao invés do debate das idéias, mistura-se tudo no mesmo
cadinho como se na noite 'todos os gatos são pardos'. Ora, os
transgênicos são todos iguais? Devem submeter-se a uma única regra
genérica que obrigue todos a tomarem, necessariamente, a decisão
imposta e típica do medicismo dos anos 1970, enunciada no slogan
'Brasil: ame-o ou deixe-o'? De maneira alguma. Há que ser verificada
a enorme diferenciação entre as concepções e os impactos econômicos,
sociais e ambientais existente nos diversos transgênicos.
A soja RR consiste na construção de uma submissão
econômica na medida em que o uso da variedade implica no uso de
herbicida com a molécula do glifosato. Assim, o monopólio duplo do
gen e da molécula cria condições econômicas peculiares que devam ser
reguladas de maneira a permitir o uso amplo dessa inovação, como um
requisito da modernidade competitiva, sem deixar os agropecuaristas
desprotegidos em termos de defesa econômica.
O mesmo não se aplica ao feijão transgênico, resistente
ao 'mosaico dourado' que dizima plantações de pequenos e médios
lavradores em diversas regiões do Brasil, em especial nas áreas
próximas das plantações de soja onde a população de mosca branca
(transmissor) se multiplica pois o vírus do mosaico dourado não
ataca a soja. Apesar de ambos serem transgênicos, não faz o menor
sentido a perpetuação de uma legislação que dê tratamento restritivo
e similar tanto à soja RR quanto ao feijão resistente ao mosaico
dourado, visto que os impactos sociais, produtivos, econômicos e
ambientais são muito distintos. A legislação deveria tipificar
transgênicos, reconhecendo a imensa distinção existente entre eles,
da mesma forma que é urgente sua incorporação desburocratizada à
normalidade produtiva.
No plano federativo, deve se deixar claro que as
unidades descentralizadas não têm competência, a não ser delegada e
de forma precária (porque sem acompanhamento de recursos), para
realizar políticas consistentes de qualidade de produtos e
processos. Dessa maneira, propostas de políticas estaduais para essa
questão vital, na institucionalidade atual, carecem de conhecimento
da realidade setorial e representam promessas que não se
concretizarão sem o enfrentamento do desafio de reestruturar o
aparato regulatório nacional.
Assim, a maioria das propostas estaduais
formuladas é absolutamente sem sentido e irrealizável. Tais
propostas carecem de regramento federal mais consistente em função
de contrariar a ordem legal vigente que permite às unidades da
federação apenas o exercício limitado de funções delegadas. Até
mesmo estimulam ensaios catastróficos na forma da edição de ciclos
de 'guerra sanitária' na agropecuária, que geram enormes distorções
alocativas, talvez mais graves que a 'guerra fiscal'.
Há que se estruturar mecanismos consistentes de controle
social e de governabilidade sobre essa estrutura de defesa, que, por
se tratar de uma atividade econômica, deva ser típica da
agricultura. Essas premissas de controle social e de governabilidade
devem, em primeiro lugar, permitir o contraditório à cidadania,
elemento fundante do Estado Democrático de Direito. As instituições
devem ter desenhos objetivos que evitem a sobreposição de funções e,
com isso, a prevalência de uma em detrimento de outra.
Nesse pressuposto, quem policia e pune (atividade típica
de defesa na fiscalização da observância de procedimentos), e por
isso apreende e destrói produções em desconformidade, não deve ser
responsável por educar (extensionistas que ensinam o controle de
pragas e doenças focando diversas alternativas técnicas viáveis). Da
mesma forma, quem emite a ordem de apreensão de produtos em
desconformidade (também típica de defesa) não deve ser a mesma
instância que produzirá as provas dessa desconformidade (análise
laboratorial).
Quem aplica a legislação pode até apresentar sugestões
de leis e decretos normativos e estabelecer padrões punitivos
(multas, apreensões e destruição), mas não deve deter o poder de
estabelecer essa legislação que deva caber a instância superior
submetida ao controle social. Afinal, nessa legislação há sempre
conflitos de interesses entre grupos econômicos e grupos sociais,
além da necessidade de arbitragem cotidiana de contenciosos que não
deve ser atribuição de instâncias de fiscalização, como a defesa da
agricultura que visa agir na aplicação irrestrita da legislação
pertinente e dentro de seus limites.
Torna-se fundamental avançar, muito mais que na mera
formalidade de regulamentação da Lei Federal nº 9.712, de 20 de
novembro de 1998, que modificou o capítulo VII – defesa
agropecuária, da Lei Federal nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991 (Lei
Agrícola). Nessa legislação, há praticamente nenhum espaço para
ações pró-ativas dos governos estaduais, o que tornam inócuas as
propostas formuladas nesse sentido, como muitas que vêm sendo
apresentadas à opinião pública.
Falta também definir a operacionalidade, com a
construção de um sistema nacional de qualidade de produtos e
processos na agricultura que defina de forma nítida limites de
competências e responsabilidades das unidades federativas. É preciso
estruturar, por meio de instrumento legal adicional, uma instituição
pública dotada de autonomia operacional (redes de instituições com
concepções compatíveis no plano das demais instâncias da federação
brasileira) para executar as ações de defesa da agricultura, num
conceito mais amplo que o de sanidade animal e vegetal.
A legislação federal vigente, peada à visão do passado,
não toca no elemento crucial representado pelos conflitos existentes
dentro do próprio aparelho de estado, no que diz respeito à
qualidade de produtos e processos. As lutas quase fratricidas entre
agentes dos Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente e da Agricultura
criam enorme insegurança jurídica e normativa derivadas de conflitos
de competência que devam ser equacionados para que a decisão
governamental seja coerente com o sentido de unidade. Daí ser
fundamental rever não apenas todo o aparato regulatório como também
o aparato institucional que o operacionaliza. Isto tanto no governo
federal quanto nos governos estaduais.
A concepção adequada para essa agência federal
representa um desafio na construção de institucionalidade compatível
com eficiência operacional e adequado gerenciamento de conflitos. A
primeira questão a ser enfrentada está em separar a formulação da
operacionalização das normas da política de qualidade, para garantir
uma visão republicana no plano federativo, com a concentração das
decisões regulatórias numa única Câmara Federal de Regulação da
Qualidade na Agricultura.
Tal Câmara deve envolver todas as instâncias decisórias
do governo, desde que compatibilizada com a plena descentralização
institucional e federativa das ações operacionais. Nas unidades da
federação, devem ser previstos mecanismos similares que visem
garantir maior controle social sobre os processos decisórios, além
de se evitar a exacerbação de posições corporativistas e ampliar a
legitimidade da referida Câmara.
Ademais, como segundo pressuposto, para a defesa da
sociedade e da cidadania, há que se garantir o espaço para o
contraditório. Isto somente será factível com a realização das
provas e contraprovas laboratoriais por instituições independentes
da estrutura operacional que produziu a autuação em situação de
plena autonomia operacional, além da constante necessidade de
desenvolvimento científico dos procedimentos analíticos visando à
rapidez e à exatidão.
Assim, os laboratórios credenciados não podem nem devem
pertencer à estrutura das instituições operacionais de defesa. As
normas de credenciamento devem ser fixadas pela Câmara Federal de
Regulação da Qualidade na Agricultura e a execução da referida
exigência, bem como sua fiscalização, estar a cargo de outras
instâncias do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento
(MAPA) e das secretarias estaduais de agricultura.
No terceiro pressuposto, as decisões sobre os valores e
a tipologia dos serviços a serem cobrados pela instituição que detém
autonomia operacional sobre o sistema de qualidade (incluindo a
defesa agropecuária) devem ser da competência exclusiva do ministro
do MAPA no plano federal e dos secretários da agricultura no plano
estadual. As taxas nesse caso, por serem compulsórias e
obrigatórias, correspondem a instrumentos de natureza tributária e
não devem ser objeto de delegação de competência por interferirem de
forma direta nos custos das cadeias de produção da agricultura.
É preciso considerar, ainda, a política de recursos
humanos com remuneração adequada ao exercício de função indelegável
do Estado e sujeita a operar com atividades de elevados valores
econômicos. Essas premissas são fundamentais para que essa ação
pública seja executada com eficiência e controle social, de maneira
a atender aos preceitos de governabilidade, dentro dos contornos do
Estado Democrático de Direito.
Por isso, instituições e instâncias distintas devem ser
construídas para cada função precípua, com controles sociais
objetivos e espaços para o pleno exercício da cidadania. Nesse
redesenho, as análises laboratoriais devem ser enfocadas pela
estrutura governamental como prioridade para a competitividade da
agricultura. Não apenas se deve certificar a qualidade rastreada do
produto nacional mas também definir parâmetros para o
estabelecimento de barreiras não-tarifárias a fim de evitar riscos à
agricultura nacional e ao consumidor brasileiro em função de
importações de produtos.
O aprimoramento da legislação da defesa da agricultura
exige constante avanço da capacidade e da qualidade das análises e
das estruturas laboratoriais, conferindo maior rapidez e precisão,
além de maior credibilidade no comércio internacional. Daí a
necessidade de uma política de construção de redes de laboratórios
para prestação de serviços definindo de forma explícita o espaço
para o público e para o privado. Conquanto sejam fundamentais, as
estruturas públicas não podem exercer o monopólio da realização das
análises laboratoriais. Devem, sim, estruturar mecanismos de
franquia e certificação de qualidade laboratorial que permitam, via
monitoramento dos resultados, a consolidação de rede privada e
descentralizada de análise laboratorial.
Isto porque não existem recursos orçamentários
suficientes, nem no governo federal e muito menos ainda nos governos
estaduais, para sustentar a execução desses serviços pela estrutura
pública. A ela devem ser reservadas apenas as análises essenciais
não cobertas pelo setor privado (para alguns pequenos
empreendimentos socialmente estratégicos, por exemplo) e as de
monitoramento da rede privada (contraprovas), cumprindo
procedimentos explicitados na edificação da rede de laboratórios
certificados.
Ademais, dada a definição conceitual de separação de
competências, da mesma forma que quem aplica a legislação de
qualidade (inclusive defesa sanitária) não deva fazer a prova
laboratorial, não faz sentido quem produz analisar e certificar seu
próprio produto. Isto tem de ser feito com exigência de laboratório
independente.
Os recursos públicos devem ser utilizados na
modernização da rede laboratorial mantida pelas instituições de
pesquisa científicas e tecnológicas e universidades, articulando-as
numa estratégia consolidada e programando investimentos nessa
logística de excelência. Esta deveria ser uma prioridade para o
desenvolvimento da agricultura paulista e brasileira. Fundamental
incluir na agenda do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) uma linha de crédito de investimento, se possível a
taxas incentivadoras, para a estruturação de rede de excelência de
serviços laboratoriais privados para a agropecuária em todo o
território nacional.
Da mesma maneira, configura-se a estruturação de agência
de defesa da agricultura com a atribuição de gerenciar a
certificação da qualidade de produtos e processos. São requisitos
rastreabilidade adequada, recursos e estruturas compatíveis,
políticas de recursos humanos que garantam evolução funcional,
capacitação e remuneração condizentes com o exercício de uma função
pública por definição.
Trata-se de contingência da modernidade, com a
construção de instâncias de Governo compatíveis com o Estado da
Regulação. Estas devem ser capazes de enfrentar o desafio de
empreender um novo ciclo de desenvolvimento da agricultura (paulista
e nacional) que se constituiu líder mundial na produção tropical.4
_________________________
1 GONÇALVES, José S. Qualidade certificada e
rastreada como determinante da competitividade da agricultura:
análise setorial como insumo do processo produtivo. Revista
Informações Econômicas 35 (10):63-71, 2005.
2 GONÇALVES, José S. Agropecuária brasileira: anos
gloriosos que não voltam mais, agosto de 2006. (publicado na Homepage http//www.iea. sp.gov.br).
3 GONÇALVES, José S. & VEGRO, Celso Luis
Rodrigues. Pimenta, castanha e mel: primeiras vítimas da ausência de
rastreabilidade, agosto de 2006 (publicado na Homepage
http//www.iea. sp.gov.br).
4 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-81/2006.
* Artigo originalmente
publicado no site do Instituto de Economia Agrícola.-
www.iea.sp.gov.br
José Sidnei Gonçalves
possui graduação em Engenharia Agronômica pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1983) e
doutorado em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (1992).
É PESQUISADOR CIENTÍFICO VI do INSTITUTO DE ECONOMIA
AGRÍCOLA. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Teoria
Econômica. Atuando principalmente nos seguintes temas:
Desenvolvimento Econômico, Questão Agrária, Economia Política,
Estrutura de Mercado, História Econômica e Progresso Técnico.
(Texto gerado automaticamente pela
aplicação CVLattes)
Contato:
sydy@iea.sp.gov.br
Reprodução autorizada desde que citado o autor
e a fonte
Dados para citação bibliográfica(ABNT):
GONÇALVES, J. S.
Defesa Sanitária Como Parte da Qualidade de Produtos e Processos.
2006. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2006_2/QPP/index.htm>.
Acesso em:
Publicado no Infobibos em 11/9/2006
|